Luta de classes na França
A crise do capitalismo e a luta de classes na França
França amargou a sua pior recessão desde o pós-guerra em
Por Umberto Martins
Os capitalistas demitem, elevando a taxa de desemprego, precarizam os contratos e relações de trabalho. O governo, por seu turno, refletindo os interesses do capital, atua no sentido de propiciar o alongamento da jornada de trabalho e reitera a velha e por mais de uma vez derrotada agenda da reforma previdenciária, que no caso se traduz na proposta de aumento da idade mínima da aposentadoria. Não é muito diferente do que ocorre na Grécia, Portugal, Espanha e outras nações europeias.
Resistência
Na seqüência desta ofensiva do capital contra o trabalho, é inevitável a elevação da temperatura da luta de classes no país. A valente classe trabalhadora francesa, que possui uma consciência elevada de seus direitos e uma invejável experiência histórica (lembremos a heróica e gloriosa Comuna de Paris), reage com energia e uma justa indignação ao retrocesso civilizacional que as classes dominantes querem impor.
A última manifestação dos assalariados ocorreu dia 23 de março, uma terça-feira marcada por paralisações e manifestações que mobilizaram mais de 800 mil pessoas em todo o país. No dia 29 de março do ano passado, os franceses realizaram uma greve geral e no 1º de Maio cerca de 3 milhões foram às ruas protestar contra a política econômica do governo, as demissões em massa e a redução de salários e direitos.
Derrota da direita
A derrota da direita nas eleições regionais realizadas dia 21/3 refletem o crescente descontentamento popular com os rumos reacionários da França sob Sarcosy. É preciso analisar a conjuntura atual levando em consideração o contexto histórico mais geral em que o drama europeu se desenvolve.
A recessão atual ocorre no bojo de uma crise mais profunda que vem rolando nos países capitalistas mais avançados desde o último quartel do século XX, associada ao progressivo declínio econômico dos centros imperialistas e ao desenvolvimento desigual das nações, que promove o deslocamento da dinâmica industrial e do poder econômico mundial do Ocidente para o Oriente, com destaque para a China.
Tendência à estagnação
Foi naquela altura da história (década de 1970) que os chamados anos dourados do capitalismo chegaram ao fim. As economias mais industrializadas ingressaram num período caracterizado pelo progressivo declínio das taxas de crescimento econômico e elevação dos níveis de desemprego, desenhando uma tendência à estagnação; a relativa estabilidade monetária assegurada pelos acordos de Bretton Woods (padrão dólar-ouro e câmbio fixo) cedeu lugar à instabilidade (fim do lastro do dólar em ouro, câmbio flutuante, desvalorização do dólar, volatilidade cambial e desregulamentação financeira). O capitalismo regulado fracassou e foi substituído pelo capitalismo neoliberal.
Contraste
Para acentuar o contraste entre os anos dourados e os tempos atuais basta lembrar que a taxa de crescimento médio dos anos 1960 no finado G-7, que reunia as maiores economias capitalistas do mundo, foi superior a 5% ao ano. Na atual década oscila em torno de 2%. O desemprego médio na Comunidade Econômica Europeia do período era de 1,5% da PEA (População Economicamente Ativa), o que para muitos economistas caracterizava o “pleno emprego”. Hoje, a taxa de desocupação atinge 10%.
A trajetória da economia no rumo da estagnação, associada à pressão da concorrência e do desenvolvimento desigual, alterou sensivelmente as relações entre as classes sociais e aguçou aquilo que os economistas chamam de “conflito distributivo”, que é a luta entre as classes sociais pela apropriação da riqueza produzida pelos trabalhadores e trabalhadoras.
Do capitalismo regulado ao neoliberalismo
O capitalismo regulado dos anos dourados, regado pela prosperidade econômica e estabilidade financeira, assegurou à classe trabalhadora notáveis conquistas sociais e favoreceu a conciliação dos interesses contraditórios que presidem as relações capital-trabalho. Erigiu-se, então, principalmente na Europa, o chamado Estado de Bem Estar Social.
O capitalismo neoliberal, que em essência é uma ofensiva do capital para recuperar e ampliar as taxas de lucros e de acumulação, tem sido marcado pela depreciação de salários e de direitos, flexibilização da jornada e precarização dos contratos. Na Europa capitalista, a burguesia chegou à conclusão de que é necessário implodir o edifício do Estado de Bem Estar Social criado no pós-guerra.
Obra inacabada
O cenário de decadência (relativa) é obviamente agravado pela concorrência internacional, que estimula a migração de capitais para os países onde a taxa de exploração da força de trabalho é maior (resultando no deslocamento da indústria principalmente para o sudeste asiático), e emergência de novas potências, como China e, em menor medida, Índia.
Mas o neoliberalismo é ainda uma obra inacabada no velho continente, graças à vigorosa resistência da classe trabalhadora. Isto parece claro na França, onde o conflito entre capital e trabalho, com a resistência dos assalariados ao retrocesso civilizacional pretendido pelos capitalistas, é o fio condutor de grandes batalhas políticas verificadas ao longo das últimas décadas.
Greve histórica
Convém recordar que a mesma reforma previdenciária que Sarcosy quer empurrar goela abaixo dos trabalhadores, elevando a idade mínima para aposentadoria, motivou uma histórica greve geral em dezembro de 1995 que paralisou a França por 26 dias e envolveu pelo menos 3 milhões de assalariados.
O governo Juppé, de direita como o atual, não sobreviveu ao vendaval grevista, a reforma das aposentadorias foi arquivada e o Partido Socialista ganhou as eleições legislativas de 1997. Lionel Jospin, indicado primeiro-ministro, mudou a agenda econômica, conferindo prioridade à redução da jornada de trabalho para 35 horas semanais, o que despertou forte reação do patronato.
Socialismo
Para frustração popular, os socialistas acabaram capitulando ao neoliberalismo, privatizaram o que foi possível e acabaram frustrando as esperanças populares, o que abriu caminho ao retorno da direita. Mesmo a conquista das 35 horas semanais foi mutilada nas negociações com o patronato e parcialmente anulada pela flexibilização da jornada. Ao tentar a reeleição, em 2002, Jospin ficou atrás do líder da extrema direita, Le Pen.
A direita ressuscitou a proposta de reforma previdenciária, mas ainda não conseguiu concretizá-la. A classe trabalhadora continuou e continua resistindo, mas ainda não conseguiu apresentar uma alternativa convincente ao neoliberalismo. O Partido Socialista, que venceu as últimas eleições regionais, já mostrou que não é capaz de apresentar uma resposta progressista ao dilema francês.
Afinal, o que está em crise é o próprio sistema capitalista, na França, na Europa, nos Estados Unidos e em quase todo o mundo. A única saída avançada, capaz de salvaguardar os interesses e o futuro dos povos e da civilização, é o socialismo (que não deve ser confundido com a proposta social-democrata do Partido Socialista francês). A classe trabalhadora terá de abrir novos caminhos nesta direção, do contrário rumaremos para a barbárie. Este é o principal desafio do século XXI.