Lula anuncia I Conferência Nacional de Comunicação


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Certamente dois ou três eventos serão percebidos como aqueles que caracterizaram este Fórum. Dentre estes, sem dúvida alguma, o anúncio, pelo presidente Lula, da realização da I Conferência Nacional de Comunicação.

Num tipo de realidade político-social fragmentária e entrópica como esta em que vivemos hoje, cada um se achará no direito de considerar algo que lhe toca de perto como aquilo que de mais importante aconteceu no Fórum Social Mundial 2009. Mas como, na dinâmica histórica, há processos que se impõem a outros e, só por isto, o processo avança, certamente dois ou três eventos serão percebidos como aqueles que caracterizaram este Fórum. Dentre estes, sem dúvida alguma, o anúncio, pelo presidente Lula, da realização da I Conferência Nacional de Comunicação.

Lula foi muito feliz ao escolher o espaço do Fórum para fazer seu anúncio, reforçado por uma entrevista à imprensa do secretário-geral da Presidência, Luis Dulci, e por uma conversa da ministra Dilma Roussef, com lideranças do encontro. Diante dos movimentos sociais organizados, o governo, por diferentes vozes, comprometeu-se em levar à frente esta decisiva reivindicação do movimento popular.

Decisiva, por que? Porque o avanço e aprofundamento da democracia, num país como o Brasil, não será possível sem um reordenamento geral do sistema brasileiro de comunicações que favoreça à multiplicação e diversificação do poder de dizer e do direito de escolher o que ler, ver ou ouvir. O processo que ora se inicia não deverá ter por alvo simplista, enfraquecer ou desmontar o sistema comercial de comunicações, mas, sim, fomentar, fortalecer, consolidar os sistemas não-comerciais de comunicações, as publicações, emissoras, portais, sítios ou blogs que prestem serviço ao público, na sua diversidade, não sendo e não podendo, por isto, serem sustentados por anúncios publicitários, nem servirem à ideologia do mercado.

O comprometimento público do Governo com a Conferência, coloca os movimentos populares diante de uma enorme responsabilidade: fazer propostas. Já não se trata mais de lutar pela Conferência e de denunciar a enorme quantidade de absurdos legais e morais que caracterizam as comunicações brasileiras no presente momento. Existe uma infinitude de demandas reprimidas que, agora, precisarão ser ordenadas, priorizadas, sistematizadas em um projeto sólido para ser levado ao debate, seja com o campo comercial, seja com a própria sociedade. A “costura” desse projeto vai requerer um enorme esforço de negociação, de articulação, de composição, sem o quê o resultado mesmo da Conferência poderá acabar sendo a frustração de muitos.

Por outro lado, ao menos em princípio, a Conferência tem um limitador: a Constituição brasileira. A não ser que se possa avançar uma discussão que ponha em questão a própria Constituição, o debate estará subordinado aos artigos 5, inciso IX; 21, inciso XI e XII; e 220 a 224 da Constituição. Como sabemos, muitas dessas cláusulas foram modificadas durante o governo Cardoso, resultando neste atual dromedário que trai completamente o resultado de um trabalho constitucional efetivamente realizado pelo povo, através das suas muitas representações, como lembrará qualquer um que tenha estado presente às memoráveis jornadas legislativas de 1987-88.

É preciso não esquecer uma lição chave daquele processo: nas Comunicações não existe acordo. A Constituinte foi organizada de baixo para cima: subcomissões de deputados e senadores elaboravam ante-projetos setoriais específicos; estes ante-projetos eram rediscutidos e sistematizados numa comissão mais ampla, reunindo um grupo de subcomissões afins. Destas, um novo ante-projeto setorial mais abrangente subia para a Comissão de Sistematização, onde um grupo de parlamentares elaborava, respeitando os ante-projetos que lhe chegavam, o verdadeiro ante-projeto da Constituição, a ser finalmente discutido e votado por todos os constituintes, em sucessivas seções plenárias.

Na subcomissão de Comunicações, Ciência e Tecnologia, o relatório elaborado pela deputada Cristina Tavares não foi votado. Irritada com as manobras dos deputados pefelistas (hoje, os Demos), ela e a bancada democrática e popular se retiraram da sala de reuniões. O relatório aprovado foi votado apenas por um grupo de parlamentares. Na Comissão que reuniu Comunicações, Ciência e Tecnologia, Educação, Família (e outros tópicos), a briga foi ainda mais dura: sendo impossível um mínimo consenso sobre as comunicações, a Comissão simplesmente não apresentou qualquer relatório. Encerrou seus trabalhos, em função de prazos improrrogáveis, sem ter elaborado a sua proposta de projeto, inclusive nos demais tópicos. Assim, sem algum documento formal no qual pudesse se apoiar, a Sistematização pôde recuperar o ante-projeto de Cristina Tavares e inseri-lo, com algumas capciosas mudanças, no texto constitucional final.

Uma dessas mudanças, enviava para o artigo 21, que trata das “competências da União”, o ordenamento básico da exploração dos “serviços de telecomunicações” e, separadamente, da dos “serviços de radiodifusão”. Assim, o tratamento do campo das comunicações foi segmentado em dois ramos com distintos tratamentos: telefonia, inclusive, celular, de um lado; rádio e TV, de outro. Como fica a internet? E a TV por assinatura? E a TV digital? No rigor da lei magna, ressalvada muita criatividade jurídica da qual, aliás, este país é pródigo, estão no limbo constitucional. No entanto, àquela época já se sabia que novas tecnologias digitais de informação e comunicação (TICs) estavam a caminho, e que a convergência empresarial-tecnológica (CTE) desenhava-se no horizonte. Por isto mesmo, tratou-se, já então, de separar os setores, assim se resguardando interesses cristalizados....

O outro dispositivo nascido desse conturbado processo, inventou um sistema público de comunicações, distinto do estatal e do privado – proposta esta que não se encontrava no relatório da deputada Cristina Tavares. Assim, sugeria-se que a radiodifusão não seria, em princípio, um serviço público, ainda que prestado por entidades privadas concessionárias. Ou seja, abria-se o caminho para a definitiva privatização dos recursos de comunicação, sobretudo e principalmente o espectro de freqüências, exceto aqueles que passariam a ser nominalmente “públicos”.

Como o que é estatal, em princípio, é público, e o que é público acaba, de algum modo, sujeito a algum tipo de ordenamento estatal (não se confundindo estado com governo, como muitos fazem), tem sido um problema qualificar, definir e até pôr em prática este conceito de “público”, como podemos facilmente observar na prática concreta desta TV pública criada pelo governo Lula. Alguns dizem que ela tem sido mais estatal do que pública. Ora, se é estatal, é pública. A nossa dificuldade é que nem sempre o estado brasileiro é, de fato, público...

O debate que vamos travar agora não poderá ignorar os avanços econômicos, sociais e tecnológicos dos últimos 20 anos. Entrarão na agenda questões como, por exemplo, o modelo político-econômico da recém-introduzida TV digital. Ou sobre a disseminação das redes de banda-larga de curto alcance (Wi-Fi). Ou ainda sobre as potencialidades de um regime de espectro aberto. Se é consenso social (velho) que a telefonia precisaria ser universalizada e, para isso, se necessário, subsidiada, será necessário firmar consenso social (novo) sobre a universalização da infra-estrutura de banda-larga, se necessário com subsídios. Definir a banda-larga como serviço público, mesmo que concedido a agentes privados (como, no passado, foram definidas a telefonia e a radiodifusão) já representará um grande avanço na direção do socialismo do século XXI: universalizar a telefonia significava, outrora, permitir a qualquer um conversar, por telefone, com algum outro ou outra, sempre individualmente, mas universalizar a banda-larga, logo a internet, permitirá a todo mundo dialogar com o mundo todo.

Não se espere, diante dessas amplas possibilidades, que os centros políticos de poder que servem ao capital financeiro mundializado se desfaçam, sem luta aberta, dos seus até agora exclusivos meios de controle político-ideológico da sociedade Logo, esta será a Conferência que colocará realmente em questão a essência da democracia brasileira. Ela interessa, por isto, a todos os movimentos populares, a toda a sociedade, não apenas aos intelectuais, profissionais ou militantes que há muito já se empenham nesta causa pela democratização das comunicações. Por isto mesmo, como em 1988, a batalha será muito dura.

Fonte: www.cartamaior.com.br – 02/02/2009

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