O colossal poder da TV sobre o Estado e a sociedade


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As empresas de radiodifusão conseguiram acabar com um dos quatro fusos horários existentes no Brasil, só para não ter que alterar muito suas grades de programação. Mexeu-se com a vida diária de milhões de pessoas que passaram a acordar de madrugada e sair de casa no escuro, apenas para não resvalar nos interesses das emissoras.
Em debates, platéias de classe média quando confrontadas com dados a respeito do poder real da televisão no país, mostram-se incrédulas. Para elas o bicho não é tão feio assim. São formadas por pessoas que lêem jornais, vão ao cinema e ainda se dão ao luxo de pagar para ver os canais restritos a assinantes. Muitas vezes sintonizam apenas nos filmes ou nos programas infantis. Por isso, para elas, existem problemas mais graves do que a televisão para serem discutidos.

Pode até ser, mas para quem tem na TV a única janela para o mundo, as coisas são diferentes. No Brasil estão nessa condição aproximadamente 150 milhões de pessoas que, sem outras alternativas culturais, vivem em torno da televisão. E não é uma TV qualquer. Trata-se de uma das melhores do mundo em termos técnicos, o que potencializa o poder de sedução, inerente ao veículo. Mas reduz a possibilidade do surgimento de espíritos mais críticos em relação ao conteúdo transmitido, geralmente próximo à indigência.

Claro que há incômodos e insatisfações. Mas as manifestações a respeito são tímidas e limitadas. Primeiro por muitos acreditarem que a TV chega de graça às suas casas, sem lembrar que o financiamento das emissoras tem origem no sabonete ou na cerveja comprados pelo telespectador no supermercado. E como em cavalo (aparentemente) dado não se olham os dentes, fica tudo por isso mesmo. Os que ultrapassam essa limitação e sentem ânimo para exigir mais respeito de quem opera uma concessão pública se vêem diante do vazio. A quem reclamar?

O Brasil é talvez a única grande democracia do mundo onde não existe um órgão regulador para a radiodifusão. Aqui vale tudo. Nem mesmo a lei obsoleta de 1962 é respeitada. Ela diz, por exemplo, que a propaganda deve ser limitada a 25% do total da programação. E todos sabemos que há canais vendendo os mais variados produtos todos os dias, o dia todo. Não dá para reclamar nem para o bispo, ele também é um concessionário de canal de TV.

Diante da impunidade, as emissoras sentem-se à vontade para exercer seu poder sobre o Estado e a sociedade. Exemplo recente foi a batalha em torno da Portaria do Ministério da Justiça que estabeleceu a classificação indicativa por horários dos programas de TV, como determina a Constituição Federal. Um embate de quase três anos, com artistas globais sendo usados para gritar contra a "censura" do Estado.

Finalmente as normas entraram em vigor em 2007, mas as empresas não se deram por vencidas. Numa clara demonstração de força conseguiram acabar com um dos quatro fusos horários existentes no Brasil, só para não ter que alterar muito as suas grades de programação. Mexeu-se com a vida diária de milhões de pessoas que passaram a acordar de madrugada e sair de casa para o trabalho ou para a escola no escuro, apenas para não resvalar nos interesses das emissoras.

Mas não ficaram por ai. Agora, com o horário de verão adotado em parte do país, negam-se a adequar a programação nas regiões onde não vigora a hora oficial de Brasília. O resultado é que no Acre, por exemplo, a combinação do fuso com o horário de verão, faz com que programas exibidos às 21 horas em outras partes do país, passem lá às 18h. São 26 milhões de crianças brasileiras expostas a programas incompatíveis com suas idades, colocadas fora da proteção legal, garantida pela Constituição. Diante desse fato o Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), vinculado ao governo federal, divulgou nota exigindo respeito absoluto aos diferentes fusos
horários.

As empresas, sem nenhum pudor, rebatem alegando que fuso horário é diferente de horário de verão e que, portanto, elas estão cumprindo o que determina a Portaria do Ministério da Justiça. Só há uma palavra para definir esse tipo de argumento: desfaçatez. Horário indicativo é horário indicativo em qualquer parte do país. Se o programa não é recomendado para ser exibido antes das 21 horas em São Paulo, também não pode ser veiculado antes das 21 em Rio Branco.

Impondo vontades desse jeito, a TV se sobrepõe aos poderes da República e faz lembrar um velho filósofo, liberal empedernido que, diante de tanto poder, viu-se obrigado ao final da vida a rever suas posições, passando a exigir algum controle social sobre a televisão. Dizia Karl Popper que a “democracia consiste em submeter o poder político a um controle. É
essa a sua característica essencial. Numa democracia não deveria existir
nenhum poder político incontrolado. Ora, a televisão tornou-se hoje em dia
um poder colossal; pode mesmo dizer-se que é potencialmente o mais
importante de todos, como se tivesse substituído a voz de Deus".

E ele não chegou a conhecer a TV brasileira, com poder até para mudar as horas do país.
Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP e da Faculdade Cásper Líbero. É autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão” (Summus Editorial).
www.cartamaior.com.br – 24/11/2008

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