A crise econômica dos Estados Unidos
O sistema financeiro que conhecemos esgotou uma modalidade de rapina, desconhecida pela grande maioria do povo, mas que afeta a todos nós, apesar de não sabermos direito como funciona. Como disse Henry Ford: “É bom que o povo não entenda nosso sistema bancário e monetário, porque se entendesse, acho que haveria uma revolução antes de amanhã”. (Fernando López D’Alesandro - Rebelión)
1. Uma breve síntese histórica
Durante os felizes anos 1990, a expansão econômica parecia infinita e ia em dois sentidos, para a frente e para cima. O capitalismo tinha encontrado sua fórmula mágica “definitiva” para superar as crises – chamadas agora de recessões - manipulando os instrumentos financeiros que permitiam que os refluxos fossem relativamente breves e de baixo impacto. Em essência, a fórmula adotada no “Consenso de Washington” apelava para a abertura dos mercados, a liberalização absoluta do fluxo de capitais, a “inflação financeira” quase descontrolada e o controle dessas desregulamentações pelos instrumentos mundiais de controle (FMI e Banco Mundial).
É claro que ao longo dos anos 1990 houve uma seqüência de crises diversas – a dos “tigres asiáticos”, Rússia, Turquia, México - porém, as respostas para todas elas foi aplicar a fórmula mágica: injetar dinheiro em seus sistemas para que o jogo continuasse. E esse jogo, por sua vez, foi um imenso multiplicador do dinheiro, tanto do real quanto do fictício.
Nesse marco, os mercados de futuros cresceram como nunca. Com a abertura do NYMEX, em 1988, os Estados Unidos passaram a controlar o preço do petróleo, reduzindo assim os duros efeitos da crise petroleira de 1973 e gerando um mercado de futuros que expandiu a especulação e a injeção de dinheiro no sistema de forma massiva.
Paul M. Sweezy, em seu último trabalho, pouco antes de morrer, explica claramente a situação. Na verdade, Sweezy demonstra que a “expansão”, que ele analisa e critica duramente, já estava presente em todas as suas modalidades em meados dos anos 1980. Talvez o exemplo da origem da situação atual nos seja oferecido por um exemplo didático para aqueles que não somos economistas: vamos supor que um dono de loja deposita 1000 dólares no Banco A e desse depósito 800 dólares são emprestados e depositados no Banco B. “Agora, o Banco B tem um aumento em seus depósitos de 800 dólares, dos quais 160 são mantidos em reserva e 640 dólares são emprestados. A seqüência continua quando 512 dólares terminam entre os depósitos do Banco C, etc. O depósito inicial de 1000 dólares cresce, finalmente, para 5000 dólares”. Esse dinheiro na verdade não existe, os mil dólares iniciais são os reais, os 5000 finais, que supostamente estão no sistema financeiro, são fictícios, são produto da especulação.
Essa “bicicleta” de artifícios foi o que o capitalismo financeiro esteve fazendo desde meados dos anos 1980 e a queda do comunismo deu mais alento ao modelo, porque com ela ficava demostrado que o capitalismo era imbatível e que os EUA eram seu motor indiscutível. O “Consenso de Washington” foi a benção final para a abertura e para a globalização feroz, dando o aval “definitivo” para a especulação financeira como receita e solução dos problemas. Hoje sabemos que o fracasso é retumbante.
No meio deste processo, Alan Greenspan assume a presidência do Federal Reserve (FED) e se transforma, durante 18 anos, em guru da globalização e da expansão financeira e econômica mundial. Sua receita não foi muito diferente dos acordos do “Consenso de Washington” poucos anos depois, aplicando nos EUA a solução de promover uma seqüência de “bolhas”. A primeira em importância foi a bolha das “ponto com”. Uma suposta “nova economia”, baseada em bens intangíveis e na alta tecnologia, abria passagem a tal ponto que a Bolsa de Valores de Nova York criou um índice especial para avaliar sua cotação: o NASDAQ.
A bolha das “ponto com” estourou no final dos anos 1990. Muitas das empresas líderes entraram em crise terminal, a especulação financeira e as expansões de crédito fundadas nessas empresas afundaram e a “metal-mecânica” — a grande vencedora da Guerra do Golfo Pérsico, em 1990 — renasceu com força. Mas a solução de Greenspan foi rápida e simples: criar uma nova bolha.
De fato, a crise das “ponto com” foi solucionada com a manipulação das taxas de juros da FED. O Federal Reserve determina o valor do dinheiro por meio da taxa de juros que cobra dos bancos quando empresta ou entrega dinheiro. O valor dessas taxas determina o preço do dinheiro, ou seja, o juro cobrado pelos bancos quando oferecem créditos aos seus clientes. Assim, se a taxa da FED cai, os créditos também caem; se ocorre o contrário, as taxas dos créditos sobem. A “mão oculta do mercado” é, na verdade, a mão do presidente do banco central dos EUA.
Durante os últimos anos da década de 1990, o FED reduziu a taxa de juros aos seus índices mínimos históricos. A partir dessa época e até julho de 2004 os tipos de juros da FED eram de 1%. A razão? Injetar “dinheiro barato” no sistema financeiro para promover uma reativação após a crise provocada pela queda das “ponto com”. A injeção de “dinheiro fácil” expandiu o crédito e, com isto, o consumo e a economia teve uma reativação, mas criando uma nova bolha que relançou o sistema: a “bolha sub-prime” a dos “bônus hipotecários lixo”: a bolha imobiliária.
A injeção de dinheiro barato expandiu o crédito com baixas taxas de juros e a especulação financeira adquiriu novo fôlego, mas com uma modalidade “engenhosa”, dirigida ao mercado de hipotecas imobiliárias.
Quando a expansão do crédito imobiliário chegou ao seu ponto máximo, a banca dirigiu seus olhos aos setores que não possuíam moradia própria e que não tinham possibilidade de aceder a créditos. Estes são os pobres dos Estados Unidos, aqueles com baixa renda ou com um histórico de maus pagadores, que não tinham acesso às hipotecas porque representavam um risco muito alto. Mas agora, com a taxa de juros da FED em 1%, supostamente qualquer um podia pagar as hipotecas e o sistema financeiro lançou-se à caça daqueles que devido ao seu baixo nível de renda ou ao seu mau histórico só podiam ter acesso a créditos baratos. Assim, lançaram uma campanha de captação de clientes, oferecendo hipotecas com juro variável, com a expectativa de que as taxas da FED não iriam subir. O risco era enorme, os pobres podiam deixar de pagar se os juros subiam, mas essa era apenas uma hipótese, e certamente isso não ia acontecer.
Mas o risco existia e todo o mundo sabia disso. Conseqüentemente, para financiar as hipotecas de alto risco —“sub-prime”, ou seja, abaixo das melhores— e ficarem cobertas, além de para captar capital, as instituições financeiras lançaram no mercado uma série de bônus “sub-prime” respaldados por créditos hipotecários de risco. Dado o nível de risco, os juros que esses “bônus hipotecários lixo” pagavam eram altíssimos, em média de 30% ao ano. E para torná-los ainda mais “tentadores” jogaram uma carta ainda mais arriscada: conseguiram o aval das seguradoras de crédito.
As seguradoras de crédito são instituições com pouco destaque midiático, extremamente confiáveis, que respaldam e garantem os bônus que o mercado de valores emite em todos os rubros imagináveis. As seguradoras têm uma qualificação AAA, ou seja, de excelência, e jamais poderiam falir e seu respaldo aos negócios creditícios constitui uma garantia indiscutível de que o negócio será próspero. Caso contrário, as seguradoras deveriam pagar o seguro pelas perdas. E as muito sólidas e sérias seguradoras de crédito deram seu respaldo aos “bônus hipotecários lixo”, que com 30% de juros anuais garantiam ótimos lucros.
A tentação era grande demais e os principais bancos dos Estados Unidos e da Europa caíram nela. Comprar bônus acessíveis com 30% de juros não era uma coisa que aparecesse todos os dias, ainda mais garantidos por instituições inquestionáveis, com uma qualificação AAA.
Tudo ia às mil maravilhas, mas no meio da prosperidade financeira apareceram George W. Bush e sua equipe de “falcões” relançando a expansão imperial. Vamos analisar as causas e o desenvolvimento desta nova política mais adiante, por enquanto vamos nos conformar com apontar as principais características da sua política econômica, sublinhando que ela tem muito de “política” e também muito de “econômica”.
De fato, Paul O’Neill – o primeiro Secretário do Tesouro de Bush - contou como, em sua primeira reunião com Dick Cheney, recebeu a linha econômica através de uma frase paradigmática do vice-presidente: “Reagan demonstrou que o déficit não existe”; portanto, se isto é assim na política atual, expandir o déficit não é um problema. Com base nesta doutrina, e atiçados pelas ambições expansionistas, os EUA dispararam um duplo desequilíbrio nas contas públicas e na balança em conta corrente. Nessas circunstâncias, o dólar fraco foi um recurso para servir como paliativo ao rombo. Mas, a partir de 2004, a inflação começou a preocupar as autoridades econômicas e em 1º de julho Alan Greenspan subiu a taxa do FED para 1,25. O próprio Greenspan se encarregou de esclarecer a situação: a máxima autoridade em política monetária dos Estados Unidos qualificou como "enorme" o rombo nas contas do Estado, que era calculado, em 2004, em 500 bilhões de dólares para esse ano, e apontou com alarme que estava previsto que o superávit orçamentário registrado em 2000 iria se transformar em um déficit de 4,25% do Produto Interno Bruto (PIB) durante este período. E tudo isso realmente ocorreu.
Em resumo, após o 11/9 a crise dos déficits gêmeos se agravou e o FED subiu os juros até chegar em 5,25%, por volta de 2007. E as hipotecas lixo com juro variável, oferecidas aos pobres com dificuldades de liquidez, começaram a não ser quitadas quando os juros subiram. A alternativa dessas pessoas era cumprir seu compromisso com os bancos ou comer. E essa gente pobre teve a ocorrência de comer. E resolveu fazer isso exatamente no momento em que o déficit comercial atingiu níveis recorde pelo quinto ano consecutivo, chegando a 784,2 bilhões de dólares no final de agosto de 2007: em termos anuais, 9,4% a mais que em 2006. Por outro lado, o Departamento do Tesouro informou que o governo Bush gerou um déficit fiscal de 157,3 bilhões de dólares no ano fiscal de 2007, que começou no dia 1º de outubro e concluiu em 30 de setembro. O déficit em conta corrente chegou a 6,2% do PIB em 2007.
O efeito foi sentido imediatamente. Quando as pessoas deixaram de pagar, os bônus hipotecários lixo desabaram. Em setembro de 2007 a situação já era crítica: mais de 5 milhões de moradias foram postas à venda. Pela primeira vez em dez anos, seus preços caíram e os juros dispararam. Mais de dois milhões de norte-americanos perderam suas casas, há mais de 500 bilhões de dólares acumulados de inadimplência. Com a espetacular falência, em junho passado, de dois hedge funds multimilionários pertencentes ao quinto maior banco norte-americano de investimento — o Bear Stearns — as perdas foram de 1,6 bilhões de dólares. Além disso, as ações do Bear Stearns desabaram, igual que as de vários fundos de investimentos, bancos e seguradoras: mais de 200 bilhões de dólares foram perdidos entre agosto e setembro do ano passado.
E começaram as falências. Primeiro, como já vimos, no próprio império; logo depois, veio o efeito contágio. Todos os bancos do Primeiro Mundo que tinham comprado bônus hipotecários lixo começaram a afundar. O Northern Rock, na Grã Bretanha, provocou, em Londres, a primeira corrida desde 1866. Finalmente, o governo teve que nacionalizar esse banco no final de fevereiro. Logo em seguida, os desmoronamentos dos bancos abriram a possibilidade de que os árabes e os chineses se apropriassem das principais carteiras dos mais importantes bancos do mundo. Qualquer medida era válida se permitisse evitar o colapso. Assim, o Citi foi resgatado por capitais árabes, pelo príncipe saudita Al Waleed bin Talal, e pela Autoridade de Investimento de Abu Dhabi, que capitalizou a entidade com 7,5 bilhões de dólares em troca de 4,9% das ações. O UBS, por sua vez, recebeu auxílio de Singapura, que desembolsou uns 9,7 bilhões de dólares por 9,0% da entidade. Por enquanto, esses dois bancos são os casos mais retumbantes, mas outras entidades —como os ingleses Barclays, HSBC e Northern Rock, o líder francês BNP Paribas, Societé Generale, o alemão IKB Deutsche Industriebank e os fundos Bear Stern, Merrill Lynch, entre outros muitos— já contabilizaram uma forte descapitalização e, portanto, enfrentam o risco de se tornarem insolventes. Mas, para piorar tudo, as seguradoras de crédito, as mais firmes e sérias instituições de respaldo do sistema, também entraram em colapso.
Quando os bônus hipotecários lixo afundaram, aqueles que os haviam comprado massivamente, ou seja a banca internacional, exigiram o pagamento dos seguros. As seguradoras não conseguiram enfrentar a avalancha e sua situação entrou em estado crítico. A cotação das seguradoras na Bolsa sofreu, a partir do início do ano, perdas de entre 50% e 90%. Essas quedas na Bolsa aumentaram no final de janeiro, quando algumas delas apresentaram perdas trimestrais pela primeira vez na sua história, ao mesmo tempo que cresciam os rumores sobre a capacidade que teriam de manter sua qualidade creditícia, verdadeira pedra angular do negócio.
O presidente da Confederación Española de Cajas de Ahorros (CECA), Juan Ramón Quintás informou, no fim de janeiro, que as seguradoras certamente perderiam sua qualificação AAA. A situação era grave, porque perder o grau ótimo significa que todos os bônus e investimentos com o aval das seguradoras desmoronam, independente da solidez do investimento ou da empresa respaldada. Quintás revelou que havia sido feita uma reunião entre uma dúzia de pessoas em Nova York, na qual estavam presentes o representante do órgão regulador de seguros norte-americano e representantes dos principais bancos dos EUA. Pelo visto, nessa reunião se chegou a um acordo para evitar a falência das seguradoras. Este pacto, segundo Quintás, teria sido o causador da “reação positiva” dos mercados bursáteis. Contudo, no dia 15 de fevereiro a Agência de Classificação Moody’s reduziu a nota AAA da seguradora de bônus FGIC Corp. (a quarta em importância neste mercado), o que reativou todos os temores sobre a situação deste tipo de companhia.
A Moody’s rebaixou-a em seis níveis e disse que poderia voltar a fazer isso, depois que soube que esta companhia precisaria de uns US$ 4 bilhões em capitalização para conseguir manter seu status creditício. Uma semana depois, a agência de avaliação de riscos Fitch reduziu a qualificação de solvência da Ambac Assurance Corp., uma das duas primeiras companhias do setor a nível mundial. De fato, seis dias depois a MBIA anunciou a posta em marcha de um processo de arrecadação de capital para evitar uma redução da sua qualificação de "AAA", vital para futuros negócios.
O primeiro efeito da crise foi a reativação da velha, mas sempre efetiva, lei de concentração de capital. Assim como capitais chineses e árabes conseguiram comprar parte do sistema financeiro falido, as seguradoras precisaram ceder diante de Warrent Buffet, um dos grandes burgueses das finanças norte-americanas, que comprou as três maiores seguradoras de bônus dos Estados Unidos por 800 bilhões de dólares em bônus livres de impostos, conforme ele mesmo informa em uma entrevista na CNBC. "Isto poderia eliminar uma nuvem maior no mercado", garantiu, e os maiores lucros vão para a sua conta, dizemos nós.
E as autoridades econômicas foram ao resgate, sem muita sorte. Primeiro, injetaram dinheiro no sistema por diversas vias; depois, a FED reduziu drasticamente as taxas de juro de 5,25 para 3,25 em um mês, um pouco tarde demais e sem resultados à vista. Na verdade, a solução “ortodoxa” aplicada por Bernake não conseguiu outra coisa a não ser botar mais lenha no fogo. De fato, até o estouro da crise sub-prime, a “inflação financeira” global era desconhecida, porque dois anos atrás a Reserva Federal deixou de publicar o M3, ou seja, o indicador que mostra quantos dólares existem no mercado global. Devido à expansão creditícia e ao déficit gêmeo norte-americano as existências de dólares no mundo devem ser imensas. No meio de uma crise em que a hiper especulação foi a causa, injetar mais dinheiro no sistema é como dar comida para alguém com indigestão. O valor do dólar despenca não só pela crise e outros fatores que vamos ver mais adiante, mas porque a lei de oferta e procura está jogando contra há muito tempo; e agora são injetados, segundo o último dado oferecido no começo do ano, em torno de 500 bilhões a mais. Da mesma maneira, a grave crise de confiança que surgiu em todo o mundo provocou que, apesar da baixa taxa de juros dos EUA, os bancos não emprestem e, pior ainda, não emprestam entre eles mesmos, porque ninguém sabe quem, nem até que ponto, está contaminado pelos bônus hipotecários lixo, uma vez que todos escondem suas compras desastrosas, ou, pelo menos, uma parte delas.
Mas há dois pontos finais: a crise dos cartões de crédito e a do sistema da Basiléia.
O Federal Reserve reportou, em 7 de fevereiro, uma queda abrupta no uso de cartões de crédito. Em dezembro, os norte-americanos tiveram US$ 944 bilhões em dívida rotativa, a maior parte desse valor proveniente de cartões de crédito, um aumento anual de 2,7%. Essa cifra marca uma queda significativa com respeito ao crescimento de 11,1% em outubro e de 13,7% em novembro, refletindo a volatilidade nos gastos dos consumidores na medida em que a economia vai enfraquecendo. Em dezembro, uma média de 7,6% dos empréstimos de cartões de crédito tinha pelo menos 60 dias de atraso nos pagamentos ou já havia entrado em situação de inadimplência, comparado com os 6,4% do ano anterior, segundo a empresa de pesquisa RiskMetrics Group. A análise inclui uma ampla faixa de mais de US$ 200 bilhões em empréstimos de cartão de crédito que são vendidos aos investidores pelos grandes emissores, como o Citigroup Inc., Capital One Financial Group, American Express Co. e J.P. Morgan Chase & Co.
Finalmente, o sistema da Basiléia II está sendo interpelado pela realidade. Uma versão de suas novas diretrizes estava prestes a ser implementada gradualmente nos Estados Unidos no mês próximo. A principal mudança era que os bancos deveriam ter mais liberdade para decidir por sua conta quanto risco financeiro estão dispostos a assumir, uma vez que eles, supostamente, estão em melhor posição que os reguladores públicos para tomar essa decisão. Contudo, as turbulências financeiras globais, causadas pelo estouro da bolha imobiliária nos EUA, estão pondo de cabeça para baixo algumas suposições fundamentais sobre o risco. As instituições do mundo inteiro julgaram de maneira equivocada a segurança de investimentos que vão desde as hipotecas de alto risco aos complexos valores financeiros estruturados. Isto é particularmente verdadeiro no caso da Europa, onde muitos bancos já operam abaixo dos padrões de risco do acordo Basiléia II. O Wall Street Journal informa em sua edição de 5 de março que a crise desatada pelas sub-prime, especialmente o impacto na banca européia e, principalmente, o baque no UBS suíço —o país onde fica a Basiléia— fez com que o senado dos Estados Unidos postergasse a aplicação do Basiléia II por tempo indeterminado. A desregulamentação e a autarquia bancária ficaram congeladas pelos golpes da realidade.
E o sistema financeiro não volta à tona. O total de perdas acumulado pelos principais índices desde 1º de janeiro até 5 de março mostra isso. O Dow Jones acumula perdas de 7.98%; o Eurostoxx de 16.26%; o S&P 500 perdeu 9.32% e o Nikkei 15.26%.
2. Conseqüências globais
O foro de Davos foi a caixa de ressonância mais clara da crise. Os atores deste simpósio do poder econômico mundial deram sinais claros de que estamos vivendo uma época de mudanças e de que a crise sub-prime é o que está emergindo de uma conjuntura impensável uns anos atrás.
August Bebel dizia que para entender o capitalismo é preciso escutar a burguesia. Não há dúvida de que George Soros é um burguês, mas é um burguês inteligente. Para ele, “a atual crise significa o fim de uma era de expansão do crédito, fundada no dólar como moeda de reserva internacional. As crises periódicas faziam parte de um processo mais vasto de expansão-recessão. A crise atual é o ponto culminante de um gigantesco boom que durou mais de 60 anos”, escreveu ele no dia 27 de janeiro, em um editorial do New York Times. Para Soros, a expansão do crédito como forma de superar a crise atual é uma solução ruim, produto direto do fundamentalismo do mercado nascido na era Reagan, o que nós chamamos de neoliberalismo. Mas nos dias de hoje, segundo Soros, a fórmula é contraproducente, porque “com o petróleo, os alimentos e outras matérias-primas em alta, e com o renminbi [a moeda chinesa] em rápida valorização, o FED precisa se preocupar com a inflação. Se os fundos federais chegam a cair até um certo ponto, o dólar poderia ser submetido a renovadas pressões e os títulos de longo prazo apresentariam uma queda de rendimentos. Mas é impossível determinar qual é esse ponto. Quando for atingido, a capacidade do FED para estimular a economia terá chegado ao fim”.
Nesse cenário, as conseqüências políticas seriam — ou já são — de uma mudança drástica na correlação de forças mundiais. Para Soros, a conclusão seria que a crise financeira atual, “mais do que causar uma recessão global, poderia acabar alterando as atuais relações de força da economia mundial, com um relativo declínio dos EUA e a ascensão da China e de outros países do mundo desenvolvido. O perigo radica em que as conseguintes tensões políticas, ou mesmo o protecionismo norte-americano, podem destruir a economia global e lançar o mundo inteiro na recessão, isso se não for em coisa pior”.
Assim, depois da reunião de Davos, Soros teve o cuidado de sublinhar que o momento era definitivo para a hegemonia do dólar: “O dólar é uma moeda terrivelmente imperfeita e tem os dias contados” disse para The Economist. E muitos pensam a mesma coisa. A valorização do euro —hoje cotado no mercado internacional em US$ 1,51, e já cresceu, só neste ano, 4,67% com respeito ao dólar— está modificando a correlação de forças no sistema monetário mundial. Assim, nos últimos sete anos o dólar perdeu 16% como moeda no comércio mundial e mais de 21% nas reservas dos bancos centrais do mundo, apesar de que este último dado é muito difícil de ser determinado com exatidão devido ao segredo.
Desde fevereiro de 2002 o dólar já caiu 28% contra as divisas dos sócios comerciais dos Estados Unidos, após o ajuste por inflação. Devemos lembrar o papel do euro como fator desencadeante da invasão do Iraque —Sadam cotava o barril em euros e tinha todas as suas reservas na moeda comunitária— para compreender a transcendência da mudança monetário.
Os países do Golfo Pérsico diversificaram suas reservas de 2004 em adiante, o Kuwait avalia sua moeda tendo como referência uma “cesta” e o Irã vem tomando decisões radicais: desde janeiro vende seu petróleo em euros e em 17 de fevereiro último abriu sua bolsa petroleira na ilha de Kish, onde o barril é cotado em euros, rublos e em variáveis de troca. Se formos analisar as tensões entre Washington e Teerã, não devemos descartar os anúncios da bolsa de Kish como um fator-chave deste enfrentamento. É possível que o fato de o barril ter chegado aos 100 dólares na segunda quinzena de fevereiro esteja vinculado com a bolsa iraniana. Não foi inocente, também, a posição do Irã, Venezuela e Equador na OPEP, de cotar o petróleo por meio de uma “cesta de moedas”, na qual o dólar seria apenas mais uma.
O que sabemos é que a China tem duas armas fundamentais: é a principal credora da dívida norte-americana no mundo, mais de 1,4 trilhões de dólares. De modo que se a China decidisse vender uma parte ou toda a sua dívida, o dólar entraria em colapso. É claro que esta é uma arma de chantagem contra a qual os EUA nada podem fazer. Também sabemos que desde 2002 um terço das reservas Chinesas estão em euros. E na sua zona de influência imediata, a ASEAN, a situação é muito chamativa, porque a região possui, em conjunto, 67% das reservas de dólares do mundo. O dólar mantém sua hegemonia, mas em um jogo duplo perigoso no qual todos podem abandonar a partida e fazê-lo entrar em colapso quando for conveniente. É provável que a chave da situação tenha sido dada no Foro de Davos por Cheng Siwei, vice-presidente do Comitê Central do Partido Comunista da República Popular da China, quando afirmou: “Os asiáticos estamos economizando hoje para gastar amanhã, mas os americanos gastam hoje o que só terão amanhã”.
O mesmo senhor Siwei mencionou, no final do Foro, a mudança substancial de atitude com respeito à China e aos países do BRIC. Antes, estavam preocupados pelo crescimento explosivo dos países emergentes; hoje, todos em Davos estão preocupados porque querem que a China e o BRIC continuem crescendo. Transformaram-se na locomotiva do crescimento atual, substituindo — por quanto tempo? — os Estados Unidos. E se isso se mantiver assim, será uma reviravolta copernicana em nossa história.
Para os países subdesenvolvidos e especialmente para a América Latina, a situação é diferente à de outras crises do capitalismo global. O consenso geral dos economistas é que os preços dos alimentos vão continuar subindo, mesmo se os EUA entrarem em uma recessão, porque os alimentos são, geralmente, um dos últimos setores a serem afetados por um esfriamento da economia. Uma análise do economista Peter Buchanan, do banco canadense CIBC World Markets, apontou que o resto do mundo não é inume a uma recessão nos Estados Unidos, mas que o impacto não será tão importante como foi no passado. Buchanan sustenta que os EUA desempenham um papel menor na economia global, confirmando o novo papel do BRIC, que representa hoje 40% do crescimento mundial, ou seja, entre três e quatro vezes a participação dos Estados Unidos.
Quando analisa os preços dos recursos naturais —metais, petróleo, cereais básicos e alimentos— o economista do CIBC conclui que continuam altos apesar das perspectivas de recessão nos Estados Unidos. Embora os Estados Unidos ainda sejam o principal mercado para o petróleo e da sua economia ter se comportado ‘de maneira decente’ nos últimos dois anos, a demanda de cru nesse país não cresceu nesse período, enquanto continua aumentando na Ásia e nos países emergentes. A demanda de metais da China, segundo o CIBC, é de duas a três vezes mais importante do que era a dos Estados Unidos e continua crescendo a um ritmo de dois dígitos.
Da mesma maneira, a dependência com respeito aos EUA da Ásia, da zona do euro e da América Latina tem diminuído ao longo da última década, como nunca aconteceu no século passado. No ano 2000, os Estados Unidos absorviam 17% das exportações da zona do euro e da América Latina, e em ambos os casos a porcentagem caiu para 13,5% nos últimos 12 meses. No caso das exportações dos países emergentes da Ásia, os Estados Unidos absorviam 21% do total em 2000, caindo para pouco mais de 16% no último ano. Nos últimos 10 a 15 anos, acrescentou Buchanan, os países da Ásia mostraram sinais de ‘descolamento’ com respeito à economia norte-americana.
O impacto da recessão norte-americana de 2001 nos países asiáticos foi mínimo e desde então eles têm mantido uma tendência firme de alto crescimento, inclusive quando a dos Estados Unidos começou murchar, em 2004. “Na última década, o alto crescimento da economia chinesa tem mostrado uma correlação negativa com respeito à economia dos Estados Unidos”. Apontou, também, que a análise das cifras do comércio chinês mostra uma crescente dependência do mercado doméstico e dos mercados asiáticos, que passam a substituir o norte-americano.
Finalmente, o divórcio da América Latina e outros países do Terceiro Mundo com o FMI acrescenta um novo fator de independência econômica inegável e removedor. Pela primeira vez em décadas não temos a necessidade de prestar contas nem de aceitar “assessorias” que sabemos bem os resultados que tiveram.
Para o economista Jeff Rubin, que dirige o departamento econômico do CIBC, a economia mundial está “se orientando dramaticamente” dos Estados Unidos para os países em vias de desenvolvimento e exportadores de petróleo. “Apesar de que uma recessão profunda nos Estados Unidos terá maiores implicações, nossos cálculos sugerem que no caso de uma recessão comparável à de 2001 somente serão afetados um número chave de mercados”, destacou. “Há dez consumidores no Brasil, na Rússia, na China e na Índia que irão substituir cada norte-americano que deixe de comprar” como conseqüência da crise hipotecária e da queda dos preços de suas casas.
Para Rubin, há mais países em desenvolvimento que estão atingindo o nível de consumo do primeiro mundo e, por isso, “podem ser jogadas pela janela todas as comparações entre a economia norte-americana e os passados ciclos do setor de recursos naturais”. Joseph Borrel anunciou, em 27 de fevereiro, que no mundo há reservas suficientes para cobrir as necessidades de trigo somente durante 30 dias. Borrel reuniu-se, em Bruxelas, com responsáveis da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) justamente por causa da crise dos alimentos básicos, uma vez que, disse ele, tem havido um aumento médio de preços de algo em torno aos 30% nos últimos tempos.
Em outra ordem de coisas, o uso massivo de grãos para a produção de biocombustíveis dispara o consumo cereais. O gado também não vai nada mal. As secas históricas do meio oeste norte-americano obrigaram a sacrificar as fazendas e os Estados Unidos saíram para se abastecer de carne de gado como poucas vezes nas últimas décadas. A expansão do consumo de carne, algumas reduções de rebanhos no mundo e dificuldades sanitárias, fazem com que o mercado agropecuário global conheça, também, um crescimento inusitado, empurrado pelo crescimento do BRIC e pela expansão do comércio sul-sul.
3. Algumas conclusões
A crise sub-prime, a crise do dólar e seu contágio global eram esperadas há muito tempo. O capitalismo não pôde e não soube como neutralizá-la, apesar de que era evidente desde o final de 2006. A especulação, o lucro e a ganância provocaram uma cegueira dogmática poucas vezes vista na teoria econômica capitalista. Trata-se de um episódio circunstancial na história econômica, ou da evidência que demonstra o esgotamento de um modelo? Acreditamos que a segunda é a questão central.
O capitalismo imperial foi vítima das suas próprias contradições. Promoveu o neoliberalismo, primeiro esgotou a nós, no sul, e agora estão provando os efeitos da sua própria receita.
Mas, é claro, uma coisa é uma crise financeira e econômica nos EUA e outra muito diferente uma crise nos países subdesenvolvidos. Contudo, hoje, pela primeira vez em séculos, a previsão é que a crise tenha um contágio parcial. A América Latina não entrou no jogo dos bônus lixo, produz o que o mundo precisa, reduziu seu sistema financeiro, em grande parte mais racional e rompeu os laços que a mantinham atrelada às organizações internacionais de crédito.
Enquanto isso, a expansão financeira do Primeiro Mundo esgotou seu ciclo e dá a impressão de que a situação não será revertida em pouco tempo. Contudo, esta não é somente uma crise econômica, senão que é, também, uma crise de hegemonia. Os dados apresentados neste trabalho mostram uma perda progressiva de espaço econômico dos Estados Unidos, que se traduz em uma perda progressiva de poder. É provável que o relançamento da expansão militar tente ser o antídoto dessa crise de poder que os dados econômicos de hoje começam a mostrar.
O surgimento do BRIC e a afirmação soberana de outros países apesar dos Estados Unidos, configuram um cenário futuro totalmente diferente do que conhecemos. É provável que estejamos nos dirigindo para um mundo policêntrico, no qual os EUA sejam apenas um a mais, poderoso, não há dúvida, mas em um mundo em que as economias, as moedas e o poder global sejam mais equilibrados entre diversos centros regionais.
O sistema financeiro que conhecemos esgotou uma modalidade de rapina, desconhecida pela grande maioria do povo, mas que afeta a todos nós, apesar de não sabermos direito como funciona. Afinal de contas, como dizia outro burguês inteligente, Henry Ford: “É bom que o povo não entenda nosso sistema bancário e monetário, porque se entendesse, acho que haveria uma revolução antes de amanhã”.
Tradução: Naila Freitas / Verso Tradutores