DVD “Diários de Motocicleta”: Humanizando o mito Che Guevara


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Para aqueles que, como eu, foram criados sob a ditadura militar que encobriu o Brasil de trevas por 21 anos, a figura de Ernesto "Che" Guevara sempre foi associada à alcunhas como "baderneiro profissional", "vagabundo" e "comunista". Só na maturidade, quando rompemos essa bolha de ilusão criada pela mídia corporativa e seus papagaios para nos cegar, é que passamos a ter contato com o mundo real e conhecer melhor a história na qual estamos inseridos.

É normal, particularmente para jovens estudantes, passar a associar, a partir daí, Guevara a um ícone de luta política por igualdade e justiça. É para esse tipo de pessoa que o filme de Walter Salles (de Central do Brasil e Abril Despedaçado) está endereçado. Afinal, Diários de Motocicleta conta justamente a história do jovem Ernesto Guevara de la Serna (na época com 23 anos) e sua viagem de oito meses pela América latina, inciada na Argentina (seu país de origem) até a Venezuela.

Foi justamente durante essa jornada que o futuro revolucionário que ajudou o povo de Cuba a se libertar do julgo estadunidense, na companhia do amigo Alberto Granado, começou a travar contato com a realidade dos povos da região e das injustiças e misérias que os afligiam, a ponto de terminar a viagem transformado numa nova pessoa.

O grande mérito do diretor Salles e do roteirista José Rivera foi conseguir encontrar o equilíbrio perfeito entre a simples narração linear dos eventos com a gradual transformação psicológica dos protagonistas. Não existe espaço no filme para discursos ou pregação política, muito menos para panfletagem didática de "esquerda" que prejudica tantos outros filmes bem intencionados.

Outra boa notícia é que o diretor deixa aos dois excelentes atores centrais, Gael Garcia Bernal (como Guevara) e Rodrigo de la Serna (como Alberto), dar cabo de todas as nuances sugeridas pelo o roteiro, que é baseado nos livros de memórias que ambos escreveram após a viagem. A honestidade e a ternura de Guevara encontraram a representação perfeita na interpretação discreta e muito humana de Bernal, ao mesmo tempo que De la Serna dá o contra-ponto cômico exato na pele do debochado e mulherengo Granado.

O filme, que de início parece ser a narração de uma mera diversão engendrada por dois jovens conscientes, porém imaturos e aventureiros (portanto, absolutamente normais), aos poucos vai se transformando numa emocionante análise do poder que o simples contato com outro ser humano pode ter na formação da personalidade. E Salles consegue transmitir toda esse crescimento do caráter dos protagonistas sem nunca ser piegas ou manipulativo.

Sua câmera, pelo contrário, apenas acompanha os dois quase como num documentário e deixa-os livre para explorar os ambientes e interagir com seus companheiros de cena (muitos deles pessoas reais que garantem ao filme um necessário toque de realismo e verdade). Essa áurea de realidade é elevada pela fotografia inspirada de Eric Gautier e pela trilha musical intimista e discreta, porém muito tocante, de Gustavo Santaolalla (de Amores Brutos, 21 Gramas e O segredo de Brokeback Mountain).

O ponto alto de Diários de Motocicleta é a tentativa de Guevara em atravessar o rio Amazonas a nado, quando estavam na colônia de leprosos de San Pablo, no Peru. A cena marca a transformação definitiva da visão de mundo dele e serve também para mostrar ao espectador, como argumentou o diretor Salles em entrevistas, que existem sempre duas margens em qualquer rio, cabendo a cada um de nós escolher em qual delas prefere estar. “Che” fez a escolha dele e pagou caro por isso.

Saber de antemão o destino trágico que os EUA reservaram ao revolucionário, fuzilado covardemente depois de ser preso na Bolívia, torna ainda mais amarga a experiência de ver esse belíssimo filme, certamente um dos mais relevantes já feitos sobre a realidade da América Latina.

André Lux

*Publicado originalmente em https://tudo-em-cima/blogspot.com/

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