A estratégia política do PAC
A forma pela qual o governo Lula conseguiu sair do cerco político acabou dando-lhe condições de abrir uma janela para sair do cerco financeiro. Não existe mais o eixo de poder absoluto que ligava Fazenda e BC. O jogo está mais equilibrado e o investimento é protagonista. (Nelson Breve – Carta Maior)
Todo PACOTE tem uma metade PAC e outra metade OTE. De um lado, um Programa de Aceleração do Crescimento. No verso, uma Outra Tentativa de Embromação. É assim desde a época do Delfim – pelo menos. Um conjunto de medidas articuladas, seja para conter a inflação, promover um ajuste fiscal, enfrentar o racionamento de energia, reduzir a vulnerabilidade externa, eliminar gargalos de logística ou estimular investimentos privados. Mas sempre associado a um forte apelo psicológico para a sociedade comprar o risco de uma aposta.Assim como outras tentativas anteriores, como Avança Brasil e Plano Plurianual de R$ 1 trilhão no governo FHC, e as Parcerias Público-Privadas do governo Lula, o PAC também tem seu lado OTE, que acaba virando panacéia. Se for bem-sucedido, como o Plano Real, entrará para a história. Sem não for, ficará perdido no aterro de insucessos, como tantas outras panacéias. Mas, não dá para negar que a estratégia política que carrega o PAC é tão ousada quanto a engenharia do Plano Real que eliminou a memória da inflação criando uma moeda paralela, chamada URV – a Unidade Real de Valor.
Como observa o economista Enéas de Souza, da Fundação de Economia e Estatística da Secretaria da Coordenação e Planejamento do Governo do Estado do Rio Grande do Sul (FEE), o governo Lula passou quatro anos sob o cerco financeiro herdado da gestão anterior. Para não melindrar os gestores de fundos que mexem as cordas do mercado financeiro, abriu mão de conduzir a Política Econômica, deixando-a assentada em sono profundo no tripé das metas de inflação, câmbio flutuante e superávit primário elevado.
O cerco financeiro tem uma ponta amarrada na administração da dívida pública mobiliária. O governo federal não consegue saldar seus compromissos com o que arrecada e precisa vender títulos públicos para cobrir a diferença. Com isso, a dívida aumenta. Elevando, também, o custo de sua rolagem. Para conter essa expansão, o governo aperta o cinto do ajuste fiscal e passa a economizar mais de 10% do que arrecada, visando a redução do seu passivo. A economia estatal compromete os investimentos públicos na infra-estrutura do país. O aperto inibe os investimentos privados, que preferem aplicar seu capital na acumulação financeira de baixo risco e alta rentabilidade dos títulos públicos. Fecha-se a primeira volta do arame.
Sem investimentos, a oferta de bens não aumenta. Sem aumento da oferta, a inflação fica pressionada pelo risco de um surto de demanda. Para desestimular o consumo, que pode despertar a inflação, o Banco Central mantém os juros básicos da economia elevados. Com os juros elevados, o serviço da dívida aumenta e fica mais difícil amortiza-la sem apertar ainda mais o cinto do ajuste fiscal. É a segunda volta do cercado. Por causa desse circulo vicioso, o Banco Central não deixa o país crescer além de 3,5% ao ano, índice cabalístico que mantém a economia do país na corda bamba para evitar sobressaltos até que o saldo da dívida chegue a um patamar inferior a 40% de toda a renda acumulada pelo país ao longo de um ano, o Produto Interno Bruto (PIB).
Se o país não cresce mais do que isso, não gera empregos suficientes para reprimir suas demandas sociais. Sem conter as demandas sociais, não consegue estabilidade política duradoura, nem coesão social para mexer nas estruturas que travam nossa economia. Sem isso, o país não atrai investimentos produtivos e não desenvolve a economia do conhecimento. Fica para trás na corrida das economias emergentes. Condenado a mais cem anos de solidão. Preso às correntes do subdesenvolvimento, que não o deixam sair do estado de sítio imposto pela globalização do mercado financeiro.
Saindo do cerco político
Além do cerco financeiro, o governo Lula também ficou preso em um cerco político ao longo de quase dois anos. O escândalo da compra de apoio político no Congresso, conhecido como Mensalão, corroeu a base de sustentação parlamentar do governo, fazendo com que perdesse o controle da agenda e abrisse para a oposição uma perspectiva concreta de retomada do poder. O que se materializou nos palanques eleitorais constituídos pelas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), instaladas no Congresso com o objetivo de investigar qualquer coisa que pudesse desgastar o governo e a imagem do presidente Lula.
No entanto, a forma pela qual o governo Lula conseguiu sair do cerco político acabou dando-lhe condições de abrir uma janela para sair do cerco financeiro. Primeiro, com a recuperação da popularidade no início da corrida eleitoral. O que evitou a dispersão do apoio político. Depois, com a própria narrativa da disputa. Especialmente no segundo turno, quando ficou caracterizada a oposição entre dois projetos.
De um lado um modelo, herdeiro do governo anterior, que considera o Estado ineficiente para induzir o desenvolvimento do país. De outro, um modelo que considera necessário fortalecer o Estado para enfrentar as forças do mercado que não apostam no desenvolvimento porque seu foco está nos ganhos de curto prazo. Mesmo não sendo necessariamente uma idéia verdadeira, prevaleceu no imaginário do eleitorado a convicção de que os tucanos querem privatizar tudo, tirando emprego e renda dos pobres para dar aos ricos. Enquanto a força política representada pelo presidente Lula fortalece as empresas estatais, contrariando os ricos, para dar emprego e renda aos pobres.
Essa foi a narrativa que prevaleceu nas eleições, dando ao presidente Lula respaldo social para mudar a atitude política do governo. Sair da lógica na qual a economia é que determina o rumo da política para outra lógica que entende o contrário: a política é quem deve mandar na economia. Quem foi aclamado com 58 milhões de votos tem autoridade para determinar o rumo do país. Não é meia dúzia de burocratas nomeados por decreto.
A população é, e deve continuar sendo, o nervo fundamental da democracia. E o presidente foi convencido pelo debate eleitoral que o rumo do país é o do crescimento mais acelerado. Isso é o que Enéas de Souza considera “uma metamorfose política profunda” no ensaio “Da estratégia do investimento nascem as nações”, que será publicado na próxima edição da revista Indicadores Econômicos FEE (primeiro trimestre de 2007).
Rompendo o eixo de poder absoluto
Ele sustenta que o governo conseguiu sair do cerco das finanças ao salientar um outro personagem econômico: o investimento. Não são os juros, não é o câmbio, muito menos o superávit. Com a retomada da defesa, incentivo e propagação do investimento produtivo como primeiro ato de envergadura do segundo mandato, o presidente monta o cenário de uma nova estratégia nacional. Cria um ambiente para uma redução sem turbulências de meio ponto percentual no superávit primário, vinculando tais recursos a projetos prioritários de infra-estrutura. É a janela que, efetivamente, rompe o cerco da “Era Malan/Palocci”.
Não existe mais o eixo de poder absoluto que ligava o Ministério da Fazenda ao Banco Central. O jogo, agora, está mais equilibrado. Com a criação e incentivo a constituição de fundos de investimento em infra-estrutura, o desenvolvimentismo se comunica com a dinâmica financeira. Com o sinal de trajetória de queda dos juros básicos da econômica, os “rentistas” começam a ver vantagens no investimento indireto no setor produtivo. O peso dos investimentos da Petrobrás e o reforço da Eletrobrás colocam a energia no primeiro plano da estratégia nacional. O que também se articula com a Política de Relações Internacionais em um projeto de soberania do Estado. A correlação de forças foi alterada.
Como “garoto propaganda” do seu projeto, o presidente Lula montou uma agenda que reserva dois dias em cada semana para visitar quatro a cinco estados. Visita obras, inaugura placas ou participa de eventos relacionados ao PAC. Com essa iniciativa, fura um possível bloqueio da mídia nacional, levando boas notícias à população de cada Estado, por intermédio da mídia regional. Em cada lugar, repete a cifra dos R$ 504 bilhões de investimentos, mostra o que significam, concretamente, para o desenvolvimento regional e populariza do PAC como uma panacéia nacional.
Dessa forma, o governo Lula fortalece sua base social, tornando-a instrumento de pressão sobre o Congresso. Como conseqüência, consegue impor sua agenda à base governista. E a oposição, que ainda não encontrou seu rumo, não consegue alterar a plataforma do governo. Assim, forma-se a coesão social e política necessária para romper, decisivamente, o cerco financeiro: com a pressão insustentável sobre o Banco Central, visando a redução mais ousada da taxa de juros e a criação de um ambiente econômico diferente. O que tiraria o empresariado da expectativa para a aposta no seu instinto animal.
A estratégia é boa e a arquitetura interna do programa tem consistência. Agora, se será PAC ou será OTE o pacote de Lula, não dá para prever. Vai depender da habilidade política do presidente na relação com os agentes sociais, políticos e econômicos, principalmente. Porque o PAC só funciona se o empresariado acreditar que o governo terá sucesso no desafio. Tudo pode acabar como aquela piada do médico: “Como foi a cirurgia, doutor?”; “Foi excelente!... Mas o paciente morreu”.
Fonte: www.cartamaior.com.br – 23/02/2007