Desigualdade no acesso à água e ao saneamento


icone facebook icone twitter icone whatsapp icone telegram icone linkedin icone email

Após a divulgação do Relatório de Desenvolvimento Humano, cujo tema é crise da água e do saneamento, Carta Maior ouviu integrantes de governo e sociedade civil sobre o que está sendo feito e o que ainda está por se fazer nessas áreas no país. (Jonas Valente – Carta Maior)

BRASÍLIA – Na semana passada, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) divulgou o Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH). O estudo, que teve como temática a crise mundial da água e do saneamento, mostrou avanços do Brasil no nesta área, mas apontou desafios para o país.

Carta Maior ouviu integrantes do governo federal e da sociedade civil para aprofundar estas questões à luz da experiência de quem discute o tema e convive com a realidade brasileira. Dono de 12% da água doce do mundo, o Brasil não consegue distribuir a profusão deste bem natural para a sua população e vê no abastecimento e no saneamento o reflexo das desigualdades sociais existentes no seu território.

Segundo o PNUD, os chamados “países em desenvolvimento” constituem hoje a ponta de lança de uma crise mundial da água. “No início do século 21, uma em cada cinco pessoas residentes em países em desenvolvimento — cerca de 1,1 bilhão de pessoas — não tem acesso à água potável. Cerca de 2,6 bilhões de pessoas, quase metade da população total dos países em desenvolvimento, não têm acesso a saneamento básico”, revela o relatório. Apesar deste quadro, o Brasil vem apresentando avanços, como o aumento do abastecimento de água de 83% para 90% entre 1990 e 2004, ano ao qual se refere o levantamento. O índice, indica o documento, é próximo dos países com alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) (o Brasil está na 69ª posição, no grupo de países com ‘médio’ IDH) e da meta de 91,5% estipulada no âmbito dos Objetivos do Milênio, conjunto compromissos socioeconômicos a ser atingidos até 2015 pelos países-membro da ONU.

Roberto Malvezzi, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), avaliou positivamente o aumento apresentado pelo relatório, mas alerta que há particularidades importantes no caso brasileiro para as quais é preciso estar atento. “Normalmente estas estatísticas avaliam número de pessoas atingidas pela rede de abastecimento, no entanto tem gente que está na rede mas a torneira fica seca a semana inteira”, diz. Outro problema apontado por Malvezzi, além da regularidade do acesso efetivo à água, é a qualidade. Dados levantados pela CPT indicam que 40% da água distribuída à população têm potabilidade questionável. “A população de Recife, por exemplo, não bebe água da torneira”, diz.

Os serviços de saneamento básico apresentam de forma mais dramática a contradição entre ampliação e iniqüidade no acesso. Segundo o relatório, entre 1990 a 2004 a cobertura da rede de saneamento sofreu ampliação de 71% para 75%. Mais uma vez, no entanto, os dados carecem de análise mais cuidadosa. De acordo com Mabel Melo, assessora da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), este índice inclui o uso de fossas sépticas, uma espécie de tanque enterrado que recebe os esgotos usado como alternativa doméstica de escoamento de dejetos, sobretudo no campo. Se considerada a rede de coleta de esgoto, o índice cai para 50% da população. Segundo Roberto Malvezzi, o principal problema é o tratamento do esgoto. No caso brasileiro, apenas 25% da população tem acesso a este tipo de serviço. “Não basta colocar água para as famílias e recolher esgoto, tem que fazer tratamento”, defende o integrante da CPT. Uma das conseqüências diretas desta situação é a poluição
dos rios e lagos onde os dejetos são despejados.

Desigualdade: o principal desafio
Segundo o relatório do PNUD, um dos principais empecilhos para o avanço rumo à universalização dos serviços no País é a desigualdade da oferta e acesso aos serviços de abastecimento e saneamento. “No Brasil, os 20% mais ricos da população desfrutam de níveis de acesso à água e saneamento geralmente comparáveis ao de países ricos. Enquanto isso, os 20% mais pobres têm uma cobertura tanto de água como de esgoto inferior à do Vietnã”, diz o documento, ao apresentar o País como exemplo de local onde taxas razoáveis ou boas de cobertura não significam qualidade no provimento dos serviços. De acordo com Mabel Melo, no Rio de Janeiro, enquanto na capital o acesso à água está praticamente universalizado, na Baixada Fluminense, região de periferia vizinha à cidade, cerca de 25% da população não têm acesso a abastecimento e saneamento.

“A desigualdade existe por que o investimento é feito nas áreas que têm garantia de pagamento de tarifa”, explica Melo. Como as empresas funcionam na lógica de mercado, o que significa lucro ou pelo menos retorno para os investimentos feitos, os locais mais afastados não são cobertos pelo custo mais alto de montagem da rede.

Por isso, conclui a integrante da Fase, o abastecimento e saneamento precisam ser serviços subordinados a políticas públicas a partir da concepção de que a água é um direito humano da população e não uma mercadoria.

Mas não basta ir até onde a iniciativa privada não vai, diz Roberto Malvezzi. É preciso ter uma gestão racional e a partir da lógica da equidade no acesso. Isso significa também estabelecer uma limitação para o desperdício em áreas onde o consumo é desmedido, como no caso da maioria das áreas nobres das capitais brasileiras.

Uma das apostas para melhorar este quadro é o marco regulatório do saneamento, que está em tramitação no Congresso Nacional. Após um acordo entre governo, empresas estaduais e parlamentares no Senado (https://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=11668), a expectativa é que a matéria seja aprovada na Câmara.

Com as novas regras, espera-se a melhoria da gestão dos serviços, com definição mais clara das fontes de recursos e das obrigações dos entes federativos. “O governo discutiu com a sociedade e vem trabalhando nesta perspectiva de que até o final do ano o Brasil passe a ter a política”, diz o secretário de recursos hídricos do Ministério do Meio Ambiente, João Bosco Senra.

Além desta medida, continua Senra, o governo federal ampliou investimentos e vem realizando uma série de iniciativas para atacar o problema da desigualdade do acesso à água e ao esgoto. É o caso do Programa Nacional de Combate à Desertificação, que ajuda no processo de gestão de águas de solo em locais mais carentes como na região do semi-árido, o programa 1 milhão de cisternas e o pró-água, que amplia a captação de água de chuva e está construindo barragens na mesma região.

Segundo dados do Ministério das Cidades, foram R$ 12 bilhões liberados para ações de saneamento entre janeiro de 2003 e setembro de 2006, um valor 28 vezes maior do que o investimento nos quatro anos anteriores, ainda de acordo com João Bosco Senra.

Apesar disso, o Brasil ainda não atingiu a meta estabelecida pelo próprio Ministério das Cidades, que sugeriu o mínimo de R$ 8 bilhões por ano durante as próximas duas décadas para “sanear” o Brasil.

Mais longe ainda está o País do montante indicado pelo Relatório de Desenvolvimento Humano como médio para investimentos em abastecimento e saneamento de cerca de 1% do PIB, o que significaria hoje R$ 18 bilhões.

Para Senra, o relatório ainda não capta avanços importantes realizado na gestão Lula, como a elaboração do Plano Nacional de Recursos Hídricos e a criação de um conselho para a área, pois se refere ao ano de 2004. No estudo de 2008 reside o julgamento da primeira gestão de Lula.

Se o resultado só sairá em dois anos, o enfrentamento dos gargalos e obstáculos é urgente e se coloca como mais um desafio para um segundo mandato que inicia repleto de responsabilidade.


Fonte: www.cartamaior.com.br - 15/11/2006

« Voltar