Argentinos apóiam a nacionalização dos recursos energéticos
A possibilidade de que a Argentina readquira ações da Repsol é um rumor recorrente nos últimos meses. Publicamente, o presidente Nestor Kirchner nega intenção de nacionalizar recursos energéticos, mas seu governo emite alguns sinais ambíguos. Pesquisa mostra que maioria dos argentinos é favorável à medida. (Marco Aurélio Weissheimer - Carta Maior)
PORTO ALEGRE - Há um debate em curso na Argentina que vem sendo absolutamente ignorado pela imprensa brasileira. Um debate sobre o futuro das reservas de hidrocarbonetos do país. O conceituado jornal Página 12 publicou no dia 7 de maio uma reportagem especial sobre o tema, perguntando se a Argentina poderia estar prestes a seguir o exemplo da Bolívia, onde o governo de Evo Morales decidiu nacionalizar as reservas de gás e petróleo. O jornal publicou uma pesquisa que mostra que uma maioria significativa dos argentinos aprovaria a nacionalização do setor energético do país. Segundo o levantamento realizado pelo instituto OPSM, que ouviu 1.100 pessoas, maiores de 18 anos, em centros urbanos do país, quase 70% aprova o passo dado por Evo Morales. Mais de 50% dos entrevistados acreditam que as nacionalizações de setores-chave são estratégias adequadas para o mundo de hoje.Ainda conforme a pesquisa, mais de 70% dos argentinos veria com bons olhos que Evo Morales continuasse nacionalizando outros setores, além do energético. Menos da metade dos entrevistados disse acreditar que uma nacionalização equivale a uma expropriação de ativos das empresas. E as pessoas que responderam à pesquisa não falam por interesse próprio, destacou o Página 12, uma vez que acreditam que os eventos na Bolívia provocarão o aumento do preço do gás em seu país. Cerca de dois terços dos entrevistados acredita que o controle de setores estratégicos é parte integral da soberania de um país e um pouco mais da metade acredita que um Estado que domina esses setores tem melhores condições para aliviar a pobreza de sua população. Por outro lado, 54,9% vê a decisão de Evo Morales como um fato interno da Bolívia, enquanto 42% disseram que se trata de um capítulo de um processo de alcance continental.
A POSIÇÃO DE KIRCHNER
O dado mais significativo, segundo a avaliação do jornal argentino, é que uma maioria de 74% estaria de acordo ou muito de acordo com que o governo argentino seguisse essa tendência de nacionalização. E a oposição a essa tendência é débil. Cerca de 22% estaria pouco acordo com a nacionalização e somente 0,2% estaria muito em desacordo. Cerca de 62% disseram que a administração dos recursos energéticos do país deveria ser mista, dividida entre o Estado e o capital privado. E qual a posição do governo argentino diante dessa tendência de opinião pública pró-nacionalização? Segundo o Página 12, o presidente Nestor Kirchner teria dito a interlocutores: “Sinceramente, não podemos nacionalizar os hidrocarbonetos como fez Evo. Se retirarmos as concessões, a propriedade reverteria às províncias e não à nação. Esse é um dos muitos erros da Constituição de 1994. E o pior é que nós tivemos muito a ver com esse erro”.
Algum dia deveremos reparar esse erro, cometido pelo imediatismo dos anos 90, teria dito ainda Kirchner. Para isso, seria preciso fazer uma reforma constitucional a sério, “não sobre a reeleição, mas sim sobre temas importantes”. O presidente argentino não teria sugerido data para essa reforma, dizendo apenas que não seria nem amanhã, nem no ano que vem. Mas Kirchner foi mais claro quanto à natureza do erro cometido. “Na urgência por ter recursos para enfrentar a Menem, concordamos com a fragmentação da soberania sobre os recursos energéticos. A urgência nos cegou, não pensamos no depois. Foi como votar em De la Rua”. Segundo a Constituição, “corresponde às províncias o domínio originário dos recursos naturais existentes em seu território”. Essa cláusula, para Kirchner, levou a uma feroz entrega do patrimônio energético nacional, com o reconhecimento de privilégios às províncias petroleiras, que acabaram beneficiando as grandes empresas privadas do setor.
SINAIS AMBÍGUOS
Mas apesar da cautela e das declarações cuidadosas, o governo argentino estuda a reversão da atual situação. Um sinal claro nesta direção, foi o encontro de Kirchner com os integrantes do grupo Moreno, liderado por Fernando “Pino” Solanas, que defende a recuperação do patrimônio nacional. Na avaliação do Página 12, a mera existência da audiência tem um “simbolismo com ar de promessa, cuja consistência se medirá com o tempo”. Hoje, o Estado argentino tem um poder irrisório na empresa Repsol YPF, controlada por capital espanhol. Um funcionário do governo resumiu assim, ao jornal argentino, o quadro atual: “Pouco incidimos e pouco sabemos. As informações, solicitamos ao governo espanhol. A relação é ótima, mas é ingênuo esperar total franqueza de quem, por sua vez, negocia conosco”. Mais um exemplo dos sinais ambíguos que vêm sendo emitidos por representantes do governo argentino nas últimas semanas.
Ainda segundo a reportagem do Página 12, a possibilidade de que a Argentina readquira ações da Repsol é um rumor recorrente nos últimos meses. Ninguém confirma isso no governo, mas não há negativas categóricas também. As declarações recorrentes de Kirchner, destacando o fato de que as reservas argentinas, ao final de 2006, poderão ser iguais às existentes antes do pagamento da dívida ao Fundo Monetário Internacional (FMI), são vistas por alguns como um possível sinal de que há uma grande iniciativa do governo no horizonte. Publicamente, Kirchner rejeita a idéia da nacionalização, mas também emite alguns sinais ameaçadores para as empresas do setor. Na semana passada, por exemplo, ameaçou cassar as concessões das companhias petrolíferas que desrespeitam a Lei de Hidrocarbonetos, por não investirem o mínimo previsto em áreas menos lucrativas.
EMBATE ENTRE GOVERNO E CONCESSIONÁRIAS
Desde o início deste ano, a imprensa argentina vem noticiando um duro embate entre o governo e as concessionárias. O ministro do Planejamento, Julio De Vido, disse ao Página 12, que as empresas Repsol YPF, Petrobras e Chevron não estariam investindo o necessário para aumentar a produção de petróleo e gás no país. A Secretaria de Energia do governo confirmou que está em estudo a antecipação do vencimento de algumas áreas de concessão. Seriam áreas periféricas às jazidas, não consideradas nos planos de investimentos das empresas. Como essas áreas não apresentam grande possibilidade de oferecer novas fontes de petróleo, recebem menores investimentos que as principais. Essa decisão, reclama o governo argentino, desrespeita a Lei de Hidrocarbionetos, que estabelece um mínimo de investimentos para essas áreas. O governo argentino pode se aproveitar dessa situação, retirando a concessão dessas áreas.
E há ainda o componente político. Nesta quinta-feira (25), o presidente Kirchner comemora o terceiro aniversário de seu governo com um ato que pretende reunir mais de 100 mil pessoas em Buenos Aires, uma demonstração de força que tem direção clara e certa: as eleições presidenciais de dezembro de 2007. Representantes do governo, da CGT (principal central sindical do país), governadores e centenas de prefeitos estarão na Praça de Maio para prestigiar o evento. Nos últimos meses, Kirchner tomou medidas como a nacionalização de uma empresa elétrica estrangeira, e a adoção de mecanismos de controles de preços. Os representantes de grandes empresas européias com negócios na Argentina olham para o presidente com uma “confiança desconfiada”, tendo em mente diagnósticos como aquele feito por Riordan Roett, diretor de estudos latino-americanos na Universidade John Hopkins, dos EUA: “Acho que ele é meio que uma anomalia. Não estamos muito seguros de onde encaixá-lo”.
Fonte: www.cartamaior.com.br – 24/05/2006