Brasil precisa correr para não perder chance do desenvolvimento
Cinco representantes do grupo dos desenvolvimentistas estiveram presentes no dia 17/03, no Rio de Janeiro, em debate de questões estruturais que marcou a inauguração oficial do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.
Nelson Breve – Carta Maior
RIO DE JANEIRO - Olhar para o Brasil com a mente aberta para o que acontece no mundo. Analisar em profundidade sua história e suas estruturas econômicas, sociais e culturais. E nelas encontrar, não só os obstáculos que travam o desenvolvimento, mas também as potencialidades e os caminhos para superá-los. Com esse método de análise que permeia a obra do economista Celso Furtado, falecido em 2004, cinco dos mais conhecidos desenvolvimentistas brasileiros debateram na última sexta-feira (17), no Rio de Janeiro, os Problemas de Médio e Longo Prazo do Desenvolvimento Brasileiro. A mesa redonda, realizada no auditório Arino Ramos, do Banco Nacional Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), marcou a inauguração oficial do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.
Proposto pelo presidente Lula, o Centro Celso Furtado foi criado para desenvolver projetos de investigação e pesquisa sobre temas importantes para o desenvolvimento brasileiro. O propósito é reunir especialistas de diferentes procedências institucionais e acadêmicas para debater uma agenda com propostas de médio e longo prazos para problemas estruturais do país, como inserção internacional, integração da América Latina, matriz energética, logística, emprego, distribuição de renda, combate à probreza. “Será um espaço pluripartidário destinado ao debate livre dos temas que nós herdamos do Celso Furtado. Não é só para a exegese de suas obras, pois ele se rebelaria”, explicou o presidente institucional do Centro Celso Furtado, Luiz Gonzaga Belluzzo.
O primeiro debate promovido pelo Centro Celso Furtado mostrou que podem existir diferenças de análises e concepções entre os desenvolvimentistas. Mas em um ponto eles convergem absolutamente: se seguir o receituário neoliberal, o Brasil estará condenado eternamente à condição de nação periférica e sem controle sobre seu próprio destino. “Se mantiver no segundo quatriênio de seu mandato a política neoliberal que marca o primeiro quatriênio, teremos problemas sérios para o desenvolvimento do país”, previu o sociólogo e cientista político Helio Jaguaribe, decano emérito do Instituto de Estudos Políticos e Sociais (Iepes). Na avaliação dele, se a economia brasileira não crescer a um ritmo de 6% ao ano nos próximos 20 anos, o país perderá sua soberania para os conglomerados multinacionais.
No resgate das estruturas históricas da economia brasileira, quem foi mais longe foi o ex-presidente do BNDES Carlos Lessa. Buscou na economia cafeeira da República Velha, no início do século passado a comparação com a atual desnacionalização da economia brasileira. Lembrou que, com todas as deficiências existentes naquele tempo, a cadeia o principal produto de exportação do país era toda enraizada no Brasil. Isso também teria ocorrido no início do processo de industrialização do país, após a Revolução de 1930. Hoje, segundo Lessa, as cadeias produtivas de setores importantes da economia brasileira, inclusive o agropecuário, são controladas por empresas estrangeiras que não estão enraizadas no país.
Ele cita como exemplo a cadeia do couro. A indústria de calçados demitiu 14 mil empregados em 2005 por causa do dumping social e do câmbio, afirma Lessa, arrancando risadas da platéia ao descrever o caminho do produto: “O sapato tem couro brasileiro, mas é fabricado na China e vendido pelo Carrefour a um consumidor brasileiro”. O professor da UFRJ aponta ainda outros sinais de desnacionalização da economia. De acordo com ele, as 12 empresas que no Brasil têm sinal verde para exportar sem burocracia, encurtando prazos de 30 para oito dias, são todas estrangeiras.
No comércio varejista, as maiores empresas são Carrefour (França), Wal-Mart (EUA) e Pão de Açúcar, que hoje tem 50% de seu capital nas mãos do grupo francês Cassino. No setor bancário, calcula Lessa, 27% dos ativos estariam com bancos estrangeiros. Até no ensino superior, teria sido noticiada recentemente a compra de uma empresa que administra universidades, em São Paulo, por um grupo do Arkansas (EUA). Há obstáculos internos, externos e outros. “A solidariedade das multinacionais é com o sistema de geração de lucros que operam e não com o território onde se instalam”, afirmou Jaquaribe, reforçando a análise de Lessa.
É possível dar um salto
Procurando reproduzir o que chamou de “Operação Furtadiana”, o diretor de Planejamento do BNDES, Antonio Barros de Castro, observou que nem a matriz do pensamento liberal nem a marxista deram conta de explicar o que está acontecendo com as economias modernas. Ou seja, nem o capitalismo entrou e colapso por suas contradições, nem a liberação da mão invisível do mercado promoveu a convergência dos países. Ele lembra que a diferença entre os países mais ricos e os mais pobres nos primórdios do capitalismo era de cinco vezes. Hoje, é de 400 vezes.
Tomando por base obras recentes, ele divide o mundo em quatro tipos de economia: 1) desenvolvidas; 2) grupo emparelhante - ou catch up -, dos países que conseguiram assimilar rapidamente as técnicas de produção modernas (Japão, Coréia, China, Índia e Irlanda); 3) a vasta planície da mediocridade, onde as técnicas capitalistas vão chegando aos poucos, mas não há saltos (na qual se situa o Brasil); e 4) o resto dos que não conseguem embarcar em nenhum sentido no mundo contemporâneo, perderam as origens e não têm mais identidade (Haiti, Bolívia e outros tantos).
A conclusão dele é que, apesar do crescimento econômico insatisfatório, a situação hoje, do ponto de vista macroeconômico é a mais confortável dos últimos 25 anos. Portanto, é possível ao Brasil dar um salto de desenvolvimento, pois o mundo está passando por muitas transformações e revoluções, não só tecnológicas, que podem abrir uma janela de oportunidade para setores produtivos de grande capacidade competitiva. O exemplo apresentado por Barros como “uma barbada” é a economia do etanol com todos os seus derivados sistêmicos.
Outros três ou quatro setores estariam sendo analisados pelo Comitê de Estudos Estratégicos do BNDES, instalado na semana passada. “Temos instrumentos e potencialidades, mas não temos rumo algum”, disse o economista, frisando que o incentivo a essas cadeias é para tentar dar rumo ao desenvolvimento do país. Mas ele ressalvou que toda essa preparação para o médio e longo prazo não produzirá resultados se não forem resolvidos os gargalos de curto prazo conhecidos (juros e câmbio). “Nada vai prevalecer se não houver oxigênio. Mas, se sairmos dessa situação, há rumo para nortear as decisões”, assegurou Barros.
Investimento estatal
O papel o Estado como estimulador do desenvolvimento foi abordado de forma mais genérica pelo professor Wilson Cano, da Unicamp. Ele calculou que o investimento público é responsável por 50% do investimento na ampliação da capacidade produtiva e induz indiretamente outros 25%. Portanto, ¾ de toda a formação bruta de capital estaria relacionada com a ação do Estado. Para Cano, o país precisa repensar quais são seus objetivos de médio e longo prazos.
Na opinião dele deveriam ser a obtenção de alto e persistente crescimento de emprego e salário e um expressivo resgate da dívida social. E a atual política econômica estaria em conflito com esses objetivos mantendo um expressivo piso para os juros, mesmo em títulos emitidos recentemente para serem resgatados daqui a 40 anos. “Significa que em 2045 continuaremos na primeira colocação mundial dos juros altos. E isso é cantado como vitória”, criticou.
Para a economista Maria da Conceição Tavares, presidente acadêmica do Centro Celso Furtado, o resultado dessa política é que o governo perdeu a margem de manobra para indução dos investimentos por intermédio do orçamento federal. “Só o que pesa no Orçamento da União são investimentos sociais e juros”, constatou, observando que esse papel passou a ser exercido pelas empresas estatais que quase foram privatizadas ou destruídas pelo governo anterior graças a um “regressismo ideológico e cultural” que a mídia se encarrega de espalhar, reforçando o pensamento hegemônico que muitas vezes leva a desastres na economia. “Um pouquinho mais, este banco (BNDES) virava corporation. A Petrobras, também. A Caixa. Eletrobrás não, porque quebraram ela com a política energética”, lembrou a professora, que considera as análises de Celso Furtado extremamente atuais.
Ela observa que o que está acontecendo com a China e até com os EUA mostra que o desenvolvimento e o subdesenvolvimento são gêmeos que nasceram juntos com o capitalismo. Ela não defende a idéia de autonomia em relação ao mundo, que está presente nas reflexões de Carlos Lessa. Mas sustenta que o modelo de desenvolvimento do país deve seguir uma linha que satisfaça as necessidades da sua população. “A desatualização das idéias de esquerda junto com o charivari que está acontecendo no mundo indicam que haverá décadas muito bravas para toda a civilização mundial”.
Essa relação entre o desenvolvimento e o subdesenvolvimento ficou evidente na exposição de Lessa, que ele próprio qualificou como uma colcha de retalhos. Ele lembrou que a China tem 1,3 bilhão de habitantes, dos quais 750 mil vivem no campo, onde a renda equivale a um quinto da renda nas cidades. O processo de migração está sendo dramático e haverá problemas crescentes com a produção de alimentos e com o petróleo. No caso da Índia, Lessa observou que naquele país 300 milhões de habitantes vivem com renda inferior a US$ 1 por dia.
Economia paralela
O Brasil, com 183 milhões de habitantes passou por transformação intensa nos últimos 25 anos. Cerca de 80% da população está vivendo nas cidades. A taxa de fertilidade caiu de 6,3 filhos por mulher adulta na década de 60 para 2,1. “Temos uma janela de oportunidade demográfica”, avisou Lessa. Pois nas próximas duas ou três décadas, antes que a terceira idade se coloque como um problema fundamental, teremos uma grande população em idade de trabalhar. “Na China não se sabe o que vai dar”, observou.
Na área da educação, 97% das crianças de 7 a 14 anos estão na escola. As o sistema cresce com qualidade duvidosa, pois 55% dos alunos possuem problemas gravíssimos de interpretação de texto. Lessa lembrou que em uma olimpíada de matemática o Brasil ficou com nota um. Temos ainda 40% dos jovens cursando o ensino médio. “Isso mostra que, mesmo nas décadas de estagnação o ensino foi ampliado”, constatou, comentando ainda que, no ensino superior, a USP é a única universidade brasileira ranqueada no mundo e está na 196ª posição.
Na saúde, a mortalidade infantil caiu de 52,7 para 27 crianças por mil. “Mas somos os campeões mundiais de septicemia em hospitais, o que já provocou a morte, inclusive, de um presidente da República (Tancredo Neves)”, lembrou, calculando que o país tem 400 mil vitimas de infecção hospitalar por ano.
No trânsito, são 33 milhões de veículos, sendo 10 milhões com mais de 10 anos de uso. Temos cinco vezes mais acidentes de trânsito que o Japão. São 45 mil mortos, 300 mil hospitalizados com lesões graves em um total de um milhão de acidentes por ano. “Temos uma Guerra do Vietnan no trânsito brasileiro e o custo disso é de R$ 21 bilhões por ano”, calculou Lessa.
Na segurança pública, existe outro Vietnan. O Brasil é o 4º país do mundo em mortes violentas, perdendo só para África do Sul, Colômbia e Venezuela. São 47 mil mortes violentas por ano. Na faixa dos 20 aos 24 anos, a mortalidade de homens é quatro vezes maior que a de mulheres. “Com isso, está se criando no Brasil o fenômeno da família uniparental: uma mãe jovem, que vive na pobreza, tem um ou dois filhos com pais que não os assumem”, disse o ex-presidente do BNDES, lembrando que a rede de creches do país só atende 4,78% das crianças. “As mães dessas crianças transformam-se em um exército mais barato de trabalhadores sem carteira”, afirmou. “São indicadores extremamente graves e não estão tendo melhoria, pois o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) não leva em conta esses vietnans”.
Nanoempresários
Lessa tem mais dados para mostrar o que está acontecendo com a economia do país. Nos grotões existem 600 municípios com 26 milhões de pessoas que são população rural vivendo em condições muito precárias. As aposentadorias de um salário mínimo para o trabalhador rural com mais de 65 anos e os benefícios do Bolsa-Família provocaram uma melhoria significativa no padrão de vida dos grotões. Dos 5,2 milhões de empresas com CNPJ, só 1,5 milhão têm empregados. Estima-se que 10 milhões de empresas estejam na informalidade. “São os nanoempresários nacionais, pipoqueiros e vendedores de milho”, ironizou.
Para Lessa, do ponto de vista republicano, existem dois brasis intrincados. Um com relações formais de produção, emprego e renda, outro constituído por cadeias produtivas informais. Ele cita dois exemplos. O município de Nova Serrana (MG), que organizou todo um parque industrial baseado na falsificação de tênis de marcas famosas. Capturaram a tecnologia e hoje são 17 mil empresas organizadas como uma grande corporação para crescer (central de compras, treinamento de pessoal etc). Já criou uma marca própria e tornou-se pólo exportador. “Nunca será comprada pela Nike ou pela Adidas, porque vão copiar e reproduzir em outro lugar”, explicou.
O outro exemplo é o da Feira de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, que Lessa aponta como o maior equipamento de lazer da América do Sul. Cerca de 120 mil pessoas passam por lá nos fins de semana. São nove mil trabalhadores. “Tem banco próprio, agiota próprio, é uma organização imbatível na economia popular, que surgiu da venda da sobra da rapadura trazida do Nordeste”, lembrou.
“Estamos fundando uma ordem republicana alternativa. Um mundo na informalidade. Ao ponto de se construir um prédio de 12 andares na Rocinha”, denunciou Lessa, frisando que alguns economistas sustentam que o Brasil não cresce porque o salário mínimo é alto e os direitos trabalhistas são muito rígidos. “A informalidade é a versão tupiniquim de uma inserção de forma passiva na globalização”, concluiu o economista, responsável pela elaboração de um programa de governo para seu partido, o PMDB apresentar na eleição presidencial deste ano.
Proposta consistente
Mas Lessa fica no diagnóstico. Quem prescreve o remédio com maio aplicação é Hélio Jaguaribe. Para superar a estagnação econômica de 25 anos, ele sugere que o Centro Celso Furtado aglutine os desenvolvimentistas em um projeto para apresentar uma proposta válida e consistente que substitua o pensamento hegemônico neoliberal/monetarista. Ele adverte que essa proposta precisa ser tecnicamente correta e politicamente viável. Um projeto consistente em todas as dimensões relevantes, para ser aproveitado independente de quem venha ocupar o poder.
Esse projeto precisaria ser disputado na opinião pública e deveria abordar as seguintes diretrizes: 1) consolidar o Mercosul e a Comunidade Sulamericana de Nações, comandada apartir do eixo Brasil-Argentina-Venezuela, sem esquecer de contemplar os interesses dos países menores; 2) imprimir densidade internacional consistente para enfrentar a globalização. “Com a combinação de elementos externos e internos podemos recuperar o tempo perdido. Mas o prazo é curto para empreender esse esforço”, advertiu Jaguaribe.
Fonte:www.cartamaior.com.br - 18.03.06