Limitações no uso dos serviços públicos prestados de forma digital aumenta desigualdade no país


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O Brasil caiu dez posições no ranking da ONU sobre implementação de governo digital. As causas, na visão do Tribunal de Contas da União, estão relacionadas com a ausência de visão sistêmica da governança da transformação digital. A conclusão do relatório do TCU, embora reconheça alguns avanços, apontou falhas especialmente na gestão dos riscos da transformação digital e na falta de priorização de aspectos importantes, como a melhoria da conectividade e a educação para o uso dos serviços prestados nesse formato. 

Para o órgão, esse fator pode levar a limitações no uso desses serviços por boa parte da população brasileira, em especial as parcelas menos favorecidas economicamente e em um momento em que os serviços online passam a ser cada vez mais importantes, como agora, com a pandemia de covid-19. Os resultados completos foram citados em relatório e acórdão aprovados na sessão do TCU do dia 28/07/2021.

Em uma longa apuração, os auditores expõem um cenário recheado de problemas. Um dos focos principais foi avaliar como anda o cumprimento do decreto 10.332/2020, que instituiu a EGD (Estratégia de Governo Digital 2020-2022). Ele é considerado o principal normativo da transformação digital do poder executivo federal focado na desburocratização dos serviços públicos prestados pelo estado. A ideia do governo era oferecer serviços públicos digitais simples e intuitivos, em plataforma única, com acesso amplo à informação e aos dados abertos governamentais. Mas, na prática, as coisas não estão funcionando assim.

A avaliação do TCU foi feita em 4 pontos:

  • Formulação da estratégia e planos de transformação digital, incluindo as diretrizes, objetivos, metas, priorização, responsáveis, prazos e a orientação estratégica a que os esforços estão alinhados;
  • Sistema de monitoramento e avaliação;
  • Gestão de riscos;
  • Articulação entre as estruturas de governança.

Em todos os quesitos, o TCU viu falhas e fez recomendações de melhoria.

Uma dessas dificuldades, diz o TCU, está relacionada à imprecisão na definição de iniciativas do governo. Um exemplo é a migração dos endereços eletrônicos dos órgãos e entidades para o portal ‘gov.br’, criado para centralizar em uma única plataforma serviços para o cidadão e informações sobre as atuações de áreas governamentais.

“Foi prevista a migração de aproximadamente 1,2 mil endereços eletrônicos, mas algumas URLs foram descartadas, outras aglutinadas, e havia sítios dentro de sítios, de modo que não se migrou exatamente 1,2 mil. Ao final, foram consolidados entre 650 e 700 sítios efetivos, de modo que houve erro de dimensionamento do projeto em função do desconhecimento da realidade”, aponta.

Os auditores também constataram deficiências em elementos considerados fundamentais para que os usuários “desfrutem dos resultados decorrentes dos esforços de transformação digital.”

A preocupação está na possibilidade clara de exclusão digital de serviços online. Isso inclui, segundo o TCU, “o desenvolvimento da infraestrutura de telecomunicações do país e a capacidade dos usuários de usar os serviços públicos digitais, potencializadas pela ausência de visão sistêmica da governança da transformação digital, podem limitar e até excluir parcelas da população brasileira do uso desses serviços.

Falta de estratégias de gestão de riscos

A gestão de riscos também é problemática, segundo o relatório. No caso, diz o TCU, análises prévias devem levar em conta a possibilidade de serviços digitais apresentarem problemas, inclusive ataques cibernéticos. Mas essa busca pela segurança não estaria sendo feita.

“De um total de 12 PTDs [planos de transformação digital] enviados pela Secretaria de Governo Digital da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, somente um apresentava seção específica sobre gestão de riscos (PTD do Ministério da Justiça e Segurança Pública), sendo que, esse único plano trazia somente riscos genéricos”, alega o TCU.

Exemplos de riscos não faltam. “Caso se materializem, como no caso dos serviços do INSS e em diversos ataques cibernéticos ocorridos em 2020, podem gerar enormes prejuízos à população brasileira”, alega. Em suas recomendações, o TCU pediu que o governo “promova a identificação dos principais riscos comuns aos quais os esforços de transformação digital comumente estão expostos, inclusive os riscos de ataque cibernético”.

Os alertas são graves

Segundo especialistas, os problemas listados pelo TCU são graves. “A situação levantada é bastante crítica e merece ter toda a atenção”, afirma André Lucas Fernandes, diretor do IP.rec (Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife).

Para ele, as questões de acesso e governança são fundamentais no caso das aplicações governamentais na Internet. Fernandes alerta que um dos pontos importantes citados pelo TCU é que não há cuidado com as questões infraestruturais dos sistemas. “Elas ainda aparecem como ônus público do governo”, diz.

O melhor exemplo recente disso é o “apagão” da plataforma Lattes, que veio pela de investimento em manutenção das estruturas digitais. “A gente pode fazer um paralelo com os incêndios em museus pelo Brasil. É um contrassenso a fala do Executivo de falta de recursos e a tentativa de impedir o fluxo de recursos conforme princípios legais e aprovação pelo Congresso Nacional”, afirma.

Ele defende que é preciso pensar, antes de mais nada, na falta de acesso que os processos estão impondo às pessoas mais pobres. O investimento simbólico em desburocratização pela digitalização é uma prática equivocada, pois uma política de governo digital sem garantia de acesso e conectividade aumenta o corpo de cidadãos excluídos digitalmente, por ausência de uma contrapartida não digital de serviços fundamentais.

O problema também passa pela não compreensão dos desafios impostos na era digital. “O que o relatório do TCU aponta é que o governo brasileiro atual não compreende essa complexidade e não tem um plano efetivo”, afirma Sivaldo Pereira da Silva, professor e coordenador do Centro de Estudos em Comunicação, Tecnologia e Política da UnB (Universidade de Brasília).

“A transformação digital não deve ser confundida com a mera digitalização de serviços. Trata-se de um processo complexo que envolve planejamento, a reestruturação do funcionamento de órgãos e a criação de uma política de longo prazo que leve em conta as diversas dimensões que isso implica”, diz Silva.

Outro quesito citado pelo TCU que o professor destaca é a falta de planejamento do programa de Transformação Digital do governo. Esse programa é marcado por problemas de articulação, com muita fragmentação e sombreamento de funções entre os órgãos responsáveis por este processo.

Sivaldo Pereira da Silva, professor da UnB, alega que o resultado da auditoria do TCU era previsível. “Não chega a ser uma surpresa, pois a política digital do governo brasileiro como um todo, que engloba o processo de Transformação Digital, tem sido extremamente lenta, frágil e mal planejada. Por exemplo, a criação de canais de participação do cidadão na construção de políticas públicas, considerado um ponto importante no processo de legitimação e educação do público, praticamente inexiste. O que existia foi descontinuado”, conta.

Com informações do UOL. 

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