Entenda a reforma administrativa proposta pelo atual governo
O atual governo federal ainda não encaminhou ao Congresso Nacional o texto completo da reforma administrativa elaborada pelo ministério da Economia. Apesar de ter enviado apenas uma “fatia” da proposta, especialistas no assunto já antecipam o resultado desastroso da proposta.
Confiram a seguir trechos da análise do professor José Celso Cardoso Jr, presidente da Afipea-Sindical (Associação dos Servidores do Ipea e Sindicato Nacional dos Servidores do Ipea).
“Após trinta anos de tentativas frustradas de implementação, com certo momento mais efusivo de contestação entre 2004 e 2014, estão de volta ao cenário nacional a ideologia do Estado mínimo e a reforma administrativa – negativista do Estado – que a acompanha.”
Apesar do detalhes específicos da reforma administrativa ainda não serem totalmente conhecidos, o técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA explica as . "linhas mestras” da reforma, a partir da observação das diversas entrevistas de autoridades, artigos de opinião e documentos oficiais ou oficiosos sobre o assunto.
“Sinteticamente, a nova orientação do RH do serviço público visa incrementar a produtividade por meio de estímulos individuais à concorrência no interior da máquina, e, ao mesmo tempo, combater supostos privilégios, tais como a estabilidade no cargo.”
Ele reforça o que outros estudiosos estão expondo em relação à destruição do Estado. “Na prática, a reforma administrativa é condicionada pela ideologia do Estado mínimo e pelas políticas de austeridade centradas nos cortes de despesa que dificultam a retomada dos investimentos e do crescimento, desprotegem quem mais precisa dos serviços públicos de saúde, educação e assistência, e desorganizam – ao invés de aperfeiçoar – a administração governamental.”
Ele afirma que “os ideólogos e propagandistas dessa agenda ancoram seus dados e argumentos em conclusões infundadas e falaciosas, as quais supõem ser o Estado brasileiro:
- i) contrário aos interesses do mercado ou do capitalismo como modo de produção e acumulação dominante nas relações econômicas no país;
- ii) grande ou inchado em termos de pessoal ocupado e respectivo gasto total;iii) caro ou ineficiente em termos de desempenho institucional;
- iv) falido em termos de sua capacidade própria de financiamento e endividamento; e
- v) dependente das reformas da previdência, administrativa e microeconômicas para recuperar a confiança dos investidores privados, o crescimento e o emprego.”
O presidente da Afipea-Sindical constata o fato de que “são pífias ou inexistentes as preocupações com o desempenho governamental (setorial ou agregado) ou com a melhoria das condições de vida da população brasileira, esta, aliás, vista ou como inimigo interno ou como empecilho à acumulação de capital.
Para ele, o debate sobre a reforma administrativa tem um mérito e vários problemas. O mérito está em recolocar um tema de fato importante – para o próprio Estado brasileiro e sua população – no rol de prioridades governamentais.
E os problemas maiores estão nos documentos que “atualmente abordam a ocupação, o desempenho e a produtividade no serviço público estão quase todos centrados numa visão fiscalista e gerencialista da atuação estatal. Por essa razão, fazem referência à suposta necessidade de reduzir salários e o número de servidores públicos em atuação (PECs nºs 186 e 188; MP 922/2020).”
Os governistas defendem uma revisão das práticas de avaliação de desempenho com a finalidade principal de viabilizar a demissão de servidores públicos ativos, em especial os concursados e relativamente estáveis.
“As métricas utilizadas estão centradas, via de regra, em duas dimensões:
i) na dimensão individual da atuação dos servidores, proveniente de critérios importados do setor privado; e
ii) na dimensão da eficiência alocativa do gasto público, como se esta fosse a dimensão correta ou exclusiva de gestão e avaliação do desempenho no setor público.
Por isso, a postura discursiva dos altos escalões do governo federal e o pacote de propostas legislativas “possui em comum a mesma sanha reducionista de preços e quantidades, persecutória contra organizações e pessoas não alinhadas ao mesmo ideário e práxis político-ideológica e criminalizadora da própria atuação governamental e de parte dos seus servidores (cf., por exemplo, a LRF/2000, a EC 95/2016, e as PECs 186, 187 e 188 que conformam o chamado Plano Mais Brasil).”
Acrescenta que “ao invés de trabalhar para elevar e homogeneizar o padrão de vida da população residente no país, o governo Bolsonaro/Guedes age para nivelar por baixo o padrão histórico brasileiro de condições e relações de trabalho, lançando também os trabalhadores do setor público ao patamar e práticas milenares da sociedade escravocrata nacional. (...)
“Tanto na reforma da previdência como nesse conjunto de PEC’s do Plano Mais Brasil, é conferido tratamento diferencial e privilegiado justamente ao núcleo militar-policial-repressivo do Estado. E assim se vai desenhando um estado de exceção no país, ao que se vão caindo submetidas as instituições, os poderes legislativo e judiciário, a grande mídia, a política, a economia e a própria sociedade (des)organizada, desde a destituição da Presidenta Dilma Rousseff em 2016.
Diante desse quadro perigoso, “torna-se necessária uma melhor contextualização do problema como um todo, bem como uma revisão crítica acerca dos sentidos do desempenho no setor público, com indicações teóricas e práticas alternativas para requalificar o debate público e as perspectivas de implementação de reformas administrativas voltadas a ganhos de desempenho individual e institucional no âmbito estatal.
Cinco pontos fundamentais para a reforma administrativa
No seu contraponto à proposta de reforma administrativa do atual governo, ele aponta cinco fundamentos que “precisam ser levados em consideração para uma boa estrutura de governança e por incentivos corretos à produtividade e a um desempenho institucional satisfatório ao longo do tempo.”
São eles:
i) a estabilidade na ocupação, idealmente conquistada por critérios meritocráticos em ambiente geral de homogeneidade econômica, republicanismo político e democracia social, visando a proteção contra arbitrariedades – inclusive político-partidárias – cometidas pelo Estado-empregador;
ii) remunerações adequadas e previsíveis ao longo do ciclo laboral;
iii) qualificação elevada e capacitação permanente no âmbito das funções precípuas dos respectivos cargos e organizações;
iv) cooperação – ao invés da competição – interpessoal eintra/interorganizações como critério de atuação e método primordial de trabalho no setor público; e
v) liberdade de organização e autonomia de atuação sindical, no que tange tanto às formas de (auto)organização e funcionamento dessas entidades, como no que se refere às formas de representação, financiamento e prestação de contas junto aos próprios servidores e à sociedade de modo geral.
Por isso, uma verdadeira política nacional de recursos humanos no setor público deve ser capaz de promover e incentivar a profissionalização da burocracia pública a partir do conceito de ciclo laboral no setor público, o qual envolve as seguintes etapas interligadas: i) seleção; ii) capacitação; iii) alocação; iv) remuneração; v) progressão; vi) aposentação.
Na sua conclusão, alerta para que todos fiquem atentos aos fatores que realmente garantem ganhos de produtividade e de desempenho institucional no setor público:
i) ambiente de trabalho;
ii) incentivos não pecuniários e técnicas organizacionais;
iii) trilhas de capacitação permanente;
iv) critérios para avaliação e progressão funcional;
v) remuneração adequada e previsível; vi) estabilidade e critérios justos para demissão;
vii) condições de realização dinâmica e retroalimentação sistêmica entre as dimensões citadas.
“Este é o escopo necessário para uma discussão qualificada acerca da ocupação, da produtividade e do desempenho institucional do Estado brasileiro no século XXI”, conclui.
AUTOR: José Celso Cardoso Jr., Doutor em Desenvolvimento pelo IE-Unicamp, desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA e professor dos Mestrados Profissionais em Políticas Públicas e Desenvolvimento (IPEA) e Governança e Desenvolvimento (ENAP). Atualmente, exerce a função de Presidente da Afipea-Sindical e nessa condição escreve esse texto. Publicado pelo o Estadão.