Distribuição de renda deve ir além da integração de programas


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“A política de desenvolvimento, como temos repetido, tem que ser inclusiva e não segregadora de setores inteiros da sociedade. Mais desenvolvimento não é somente o crescimento do PIB e melhoria de variáveis macroeconômicas, tampouco é só acumulação de renda e capital. Ela deve ser, antes de tudo, desenvolvimento humano”. A frase, pronunciada pelo presidente Luis Inácio Lula da Silva durante o anúncio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), pretendeu destacar a parte social do seu mote “crescimento com distribuição de renda”.

Enquanto o lançamento do PAC sinaliza a prioridade do braço econômico no recém-iniciado segundo mandato, a agenda para garantir na prática uma maior distribuição de renda para o terceiro país no ranking mundial da concentração de riqueza ainda não está clara. Lula acenou no sentido de equilibrar as duas dimensões de seu programa com o lançamento de um pacote da cidadania ainda para o mês de fevereiro. Em entrevistas, o ministro do desenvolvimento social, Patrus Ananias, vem sugerindo que as novidades do pacote passarão pela ampliação da cobertura do Bolsa Família e pela integração dos diversos programas hoje mantidos pelo governo.

Mas para organizações da sociedade civil e especialistas ouvidos pela Carta Maior, as iniciativas até agora ensaiadas correm o sério risco de não aprofundar o enfrentamento às causas reais da concentração de renda.

Na avaliação de José Antônio Moroni, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) e da Associação Brasileira de ONGs (Abong), a separação de um programa para o crescimento de outro conjunto de medidas para a “cidadania” é uma amostra de um desequilíbrio em detrimento da distribuição de renda uma vez que este compromisso deveria permear de forma estratégica e transversal toda ação do governo. “O PAC também é social e impacta na distribuição da riqueza no país com suas opções econômicas”, completa Flávio Valente, da Ação Brasileira pela Nutrição em Direitos Humanos (ABRANDH).

Para José Moroni, há uma noção dentro do governo de que o crescimento por si só resolve a questão social, por mais que a negação desta lógica se faça presente nos discursos de Lula. A outra aposta na melhora da situação de vida dos brasileiros, que seria representada pelos programas sociais capitaneados pelo Bolsa Família, na sua opinião, não pode ser o vetor da mudança do quadro desigual que vive o país. “Transferência é política compensatória e não distributiva. Ela isolada não cria condições de exercer a cidadania, mas sim dependência do Estado”, afirma ele. “Se só ficar na assistência você acomoda o pobre e não resolve a pobreza”, concorda o professor da UnB Pedro Demo.

Entre as novidades para responder às críticas sobre a insuficiência do Bolsa Família, estão sendo estudadas medidas para integrar as políticas, como a articulação da saída do programa Bolsa Família para outros de inclusão produtiva no caso de adultos ou de estímulo remunerado ao estudo no caso de jovens.

“Isso é idéia antiga”, diz o professor Pedro Demo ao lembrar a experiência do Bolsa Escola como integração da transferência de renda com o “acesso” à educação. Vale lembrar que o próprio Bolsa Família e a criação do Ministério do Desenvolvimento Social foram esforços que já tinham como objetivo a integração dos programas de transferência de renda em funcionamento até então e da estrutura dispersa entre um órgão especial de combate à fome (o MESA) e o ministério da Assistência Social.

Medidas estruturais
A efetiva distribuição de renda, defendem as fontes ouvidas pela reportagem, só acontecerá se houver um esforço de ir à raiz dos problemas que impedem a redução da desigualdade social no país. Uma primeira tarefa, aponta Ivônio Barros, secretário do Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos (FENDH), é cessar o processo de concentração de renda. Para isso é necessário impedir ou minimizar as políticas de incentivo à setores concentradores de riqueza, como agentes que integram o capital financeiro (cujos lucros dos bancos é um exemplo). Isso passa pela redução das taxas de juros, cujo índice atual beneficia quem aplica em no mercado especulativo em detrimento dos investimentos produtivos e na garantia de direitos.

Para o presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Arthur Henrique dos Santos, além de reverter o processo de concentração de renda é preciso distribuir riqueza entre o capital e o trabalho. Isso passa, diz Santos, por equilibrar a repartição entre o que é produzido por meio do aumento da renda do conjunto da classe trabalhadora. Uma das formas de realizar isso, conforme vem defendendo a central, é garantir uma política de valorização das remunerações por meio da valorização do salário mínimo e da instituição de negociações de âmbito nacional por setor econômico e da garantia da participação nos lucros e resultados das empresas. Outra forma é aumentar o número de postos de trabalho com carteira assinada (portanto com acesso aos direitos sociais e resultados das negociações).

Neste caso, o aparente descompasso entre o empenho para o crescimento e para obter a distribuição de renda se faz presente. “O PAC quando coloca meta de crescimento mas não de emprego, não enofca a diminuição dos níveis de desigualdade”, critica José Antônio Moroni. A proposta de inclusão no PAC de metas de emprego foi defendida por diversas entidades em dias anteriores à divulgação do programa. A CUT cugeriu que as metas fossem aplicadas pelo menos às empresas que tivessem acesso a recursos públicos seja por meio de investimento direto, por empréstimo ou pro renúncia fiscal. Porém, nenhuma medida deste caráter foi incluída.

“Você tem vários setores da economia beneficiados com medidas do PAC, mas isso deveria vir acompanhado de contrapartidas sociais, com metas de geração de emprego com carteira assinada”, defende o presidente da central. Ele lembra o caso da construção civil, setor para o qual o PAC foi bem generoso mas que apresenta perfil de contratações terceirizadas em sua maioria.

O nó territorial
Para Flávio Valente, qualquer política de distribuição de renda, mesmo que avance nos pontos citados, não será efetiva sem desatar o nó da concentração de terras e da ocupação do território. “Vai haver reforma agrária? Vai se demarcar terras indígenas ou não? Sem isso, sem dar acesso à terra e, conseqüentemente, aos recursos, é impossível ter desenvolvimento”, analisa.

O tema já ascendeu como polêmica no final de 2006 quando o presidente citou comunidades quilombolas e outros povos tradicionais como “empecilhos” ao “destravamento” do país. Os investimentos desejados e previstos no PAC em energia, como construção de barragens e a expansão da base produtiva de combustíveis renováveis, na construção de rodovias ou em siderurgia “esbarram” na luta de quilombolas, indígenas e outras comunidades que lutam pelo reconhecimento de terras tradicional ou produtivamente ocupadas.

Do outro lado, figura o poder do agronegócio, baseado em grandes propriedades e com quem o presidente manteve relação de composição durante seu primeiro mandato. Exemplo disso é a famosa atualização dos índices de produtividade, medida que através de um simples decreto presidencial poderia gerar um efeito em cadeia pela desapropriação de áreas. “A manutenção deste índice é um mecanismo de concentração de riqueza enorme no país e impede a reforma agrária pois legitima o discurso de que a questão agrária está resolvida por que não tem mais terra improdutiva”, explica Moroni.

O desafio do presidente não é pequeno. Passa pela universalização de direitos como educação, saúde, alimentação, moradia, segurança pública e outros. Se no primeiro mandato foi possível achar uma acomodação de interesses, sustentada pela contenção dos movimentos sociais frente à comparação das tímidas medidas sociais com a época FHC, neste o cobertor fica cada vez mais curto. O governo terá de mostrar, assim, se efetivará uma complexa engenharia capaz de acomodar novamente os interesses diversos ou se as diferenças gritantes que marcam o quadro social no Brasil ascenderão de maneira mais radical aos olhos de toda a sociedade.
Fonte: www.cartamaior.com.br – 01/02/2007

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