Sociedade civil se mobiliza pela democratização da comunicação
Em 2002, o Epcom, Instituto de Estudos e Pesquisa em Comunicação, divulgou uma pesquisa revelando que apenas seis redes privadas nacionais de televisão aberta e seus 138 grupos regionais afiliados controlavam na época 667 veículos de comunicação: 294 emissoras de televisão VHF (que abrangem mais de 90% das emissoras nacionais), 15 emissoras UHF, 122 emissoras de rádio AM, 184 de rádio FM e 50 jornais diários.
Este quadro, que não se alterou significativamente nos últimos dois anos, é resultado de uma série de fatores, entre eles, a ausência de qualquer mecanismo que restrinja a propriedade cruzada dos meios de comunicação de diferentes naturezas numa mesma área geográfica – como acontece em diversos países do mundo. E sua principal conseqüência é o monopólio da informação regional, uma característica tão enraizada no Brasil que faz com que a maioria da população sequer perceba o quanto a concentração da mídia é prejudicial ao desenvolvimento e consolidação da democracia.
Para interromper esta inércia, estudantes, organizações não governamentais e movimentos sociais realizaram a II Semana Nacional pela Democratização da Comunicação, que se encerra neste domingo, 24/10. Foram realizados debates, exibições de vídeos, manifestações e programas de rádio em 18 cidades do país. Além de criarem espaços para a reflexão sobre os meios de comunicação no Brasil, as entidades esperam sensibilizar a sociedade para que o direito de se expressar, de ser bem informado e de produzir sua própria comunicação seja visto como um direito humano, fundamental para uma cidadania plena. Para que o direito de contribuir com o funcionamento dos meios de comunicação não seja restrito aos movimentos diretamente ligados à área. Para que a população perceba que essa questão tem a ver com cada um dos cidadãos.
“Quem nunca teve contato com essa discussão talvez não consiga fazer a relação de como o monopólio da comunicação interfere na vida prática das pessoas. Precisamos pensar sobre isso. A idéia de reunir os movimentos sociais na Semana é esta. A pauta do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] não é essa, mas eles podem levar pra dentro do movimento a discussão sobre a democratização dos meios de comunicação, para que outras pessoas entrem em contato com este assunto”, explica a estudante de jornalismo Ana Maria Straube, membro da diretoria da Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social (Enecos). No ano passado, a Enecos promoveu a primeira Semana em 20 cidades do país. Este ano, o trabalho cresceu e envolveu diversas organizações.
Uma delas é a Sociedade Cultural Dombali, que luta pela inclusão étnica e racial tendo como uma de suas principais ferramentas a comunicação. Para a coordenadora da entidade, não haverá democracia no país enquanto os meios não refletirem a diversidade étnica que existe na sociedade brasileira. “O monopólio da mídia prejudica a população negra ao contribuir para a perda da sua identidade. Os negros são 50% dos brasileiros que, dia-a-dia, através da televisão, são levados a crer que não são importantes, que sua realidade não faz parte da brasileira. Enquanto isso não mudar não podemos falar de democracia no Brasil”, afirma Regina dos Santos. “Por isso, trabalhamos com jovens negros para que eles se apropriem do modo de fazer comunicação. Ou as comunidades se apropriam disso ou nunca serão representadas”, acredita.
A mesma estratégia, de empoderamento pela juventude da linguagem da comunicação, é usada no projeto “Vídeo: Cultura e Trabalho”, da ONG Ação Educativa, no qual cerca de 40 jovens da periferia de São Paulo usam o vídeo como forma de expressão e formação. No último domingo (17), alguns desses jovens participaram do “Domingo da Comunicação no Parque do Ibirapuera”, evento que marcou a abertura da Semana Nacional pela Democratização da Comunicação na capital paulista, com exibição de vídeos, exposição de veículos comunitários, de painéis de grafite, apresentação de teatro e programas de rádio.
“Atividades como esta reforçam a perspectiva da comunicação como um direito. Há uma mitificação no debate sobre democracia e meios de comunicação social. Democratizar não é só diversificar o conteúdo, mas garantir o acesso da população à produção dos meios”, aponta Milton Alves Santos, coordenador do projeto. “Há dois desafios neste processo: educar para a mídia e pela mídia. É preciso “desglamourizar”, desmistificar a mídia, para transformar as pessoas em audiência ativa, porque a maioria ainda é passiva”, lembra.
Briga de gigantes
Mudar a correlação de forças no campo da comunicação é tarefa de fôlego. No Brasil, grande parte dos interessados diretos na área de radiodifusão tem acento no parlamento. Um levantamento do Epcom mostrou que, do total de 81 senadores desta legislatura, 36% estão ligados a veículos de comunicação. São 14 dos 17 senadores do PFL; 11 dos 23 senadores do PMDB e 8 dos 11 senadores do PSDB. Com esta bancada, fica difícil disputar as concessões de rádio e TV no país.
Mais difícil ainda é mudar a legislação que regula o setor desde a década de 60, quando a ditadura ainda era lei por aqui. Atualmente, há somente dois projetos de lei que visam alterar a estrutura concentrada do setor em tramitação na Câmara do Deputados. Um deles, de autoria de Edson Duarte (PV-BA), impõe limites para o número de concessões a entidades que prestam serviço de radiodifusão. O projeto de lei 1879/03 torna obrigatória a divulgação na Internet da relação de proprietários e diretores das empresas de rádio e TV em todo o país. “É preciso que a população tenha total informação sobre os veículos de comunicação que têm concessão pública, e que esse processo seja transparente.
Há resistência sobre quem mantém o controle, a quem pertence cada veículo. A comunicação de massa tem sido utilizada por grupos políticos específicos como um instrumento de poder”, afirma o deputado. Para Duarte, os políticos temem a discussão sobre o monopólio da comunicação em função do poder exercido pelos donos dos grandes grupos.
O outro projeto, de autoria do deputado Cláudio Magrão (PPS-SP), limita a concentração econômica nos meios de comunicação de acordo com o número de concessões que a empresa mantém por estado. “Hoje temos operações que cobrem todo o território nacional e que alcançam uma audiência elevada”, explica Magrão. Os limites à audiência representam um importante mecanismo para a democratização da comunicação em vários países, inclusive nos Estados Unidos. Já por aqui, a Rede Globo permanece soberana, mantendo níveis de audiência sempre acima dos 50% dos televisores ligados, segundo dados do Ibope.
Detentores do poder de formação da opinião pública brasileira, os grandes empresários da comunicação rechaçam radicalmente qualquer tentativa de mudança na legislação que vise democratizar o setor. E transformam projetos de controle público da TV, do rádio e dos jornais em atentados à liberdade de imprensa – quando, na prática, o que existe é a liberdade de empresa, somente daquelas que controlam a comunicação brasileira. A participação e expressão da população nesses veículos segue inexistente. Em vez de cidadãos, são vistos apenas como consumidores de mídia, o que é considerado um problema para o jornalista, sociólogo e professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo Laurindo Leal Filho. “As concessões públicas são dadas pelo Estado em nome da sociedade e devem ser fiscalizadas por essa sociedade”, defende Lalo.
Limitar o número de concessões e a audiência regional e garantir o controle público dos meios de comunicação, no entanto, são insuficientes para democratizar a mídia se, do outro lado do muro, não houver um estímulo ao surgimento e sustentabilidade de veículos pequenos, de caráter público e comunitário – aqueles que realmente se propõem a promover o debate de idéias e a dar voz à sociedade como um todo. E, por enquanto, ainda não existe nenhuma legislação que responsabilize o Estado pelo fortalecimento desses veículos, muito menos vontade para se desenvolver uma política pública nacional neste sentido.
“As verbas publicitárias do governo federal continuam a ser distribuídas tendo como único critério os índices de audiência ou circulação, o que reforça a concentração e a tendência à oligopolização”, avalia João Brant, membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, entidade que tem como principais bandeiras o direito à comunicação e a democratização dos meios no Brasil. “Anunciando, o governo não está somente dando publicidade a seus atos, mas está financiando a existência de alguns veículos. Uma política de apoio à pluralidade deve passar necessariamente pela redefinição de critérios para a distribuição dessas verbas”, acredita.
A importância em comprar uma briga deste tamanho e em enfrentar o poder público, o empresariado e muito do conservadorismo que se beneficia da exclusão e do silêncio desses excluídos mostra que semanas como esta, de sensibilização e articulação da sociedade civil em prol de seus direitos, são mais do que necessárias. São urgentes.
Fonte: www.agenciacartamaior.com.br - www.enecos.org.br