Como a DeepSeek reposiciona a corrida geopolítica pela IA
A DeepSeek se tornou na segunda-feira (27) a plataforma de inteligência artificial mais baixada da iOS App Store nos EUA e na China, sete dias depois do lançamento da sua versão mais recente, a R-1. O chatbot gratuito, feito com orçamento bem inferior aos concorrentes, surpreendeu o mercado. A novidade fez despencarem os preços das ações da fabricante de chips Nvidia e de empresas consolidadas no setor de AI. A ascensão da plataforma num momento em que os EUA estão restringindo o acesso à tecnologia avançada de chips para os chineses abre um novo capítulo na disputa geopolítica entre os países pela liderança tecnológica.
Neste texto, o Nexo explica o que é a DeepSeek, porque a plataforma impactou o mercado e como a inteligência artificial se insere na disputa geopolítica entre os EUA e a China.
O que é DeepSeek
A DeepSeek é uma plataforma de inteligência artificial generativa chinesa — semelhante ao ChatGPT, da OpenAI, e o Gemini, da Google. A empresa foi criada em 2023 pelo engenheiro chinês Liang Wenfeng com investimentos de um fundo criado por ele focado no desenvolvimento de AI. Desde então, a DeepSeek investe na atração de talentos chineses.
Os engenheiros da empresa descobriram um modelo de raciocínio computacional que não precisa usar demasiadas placas de processamento gráfico, o que diminui os custos. Diferentemente das concorrentes, eles tornaram públicos os métodos como a plataforma foi construída e trabalham com modelo de código aberto. Ou seja, a DeepSeek é um software que qualquer pessoa pode baixar e usar, modificar ou distribuir de forma gratuita. Além disso, a DeepSeek usa a técnica de deep learning (aprendizagem profunda), que tem a capacidade de usar modelos maiores para treinar modelos menores para torná-los melhor do que outros maiores.
Os chatbots da plataforma chinesa foram treinados com cerca de 2.000 placas de processamento gráfico de alta qualidade da Nvidia, somados a milhares de gerações anteriores. O investimento foi de cerca de US$ 6 milhões. Os concorrentes americanos usam, normalmente, cerca de 15 mil dessas peças, investindo bilhões de dólares.
“Por anos, as empresas chinesas estavam acostumadas a alavancar inovações tecnológicas desenvolvidas em outros lugares e monetizá-las por meio de aplicativos”, disse Liang em entrevista ao site The China Academy, em julho de 2024. “Mas isso não é sustentável. Desta vez, nosso objetivo não é lucro rápido, mas avançar a fronteira tecnológica para impulsionar o crescimento do ecossistema.”
O impacto no mercado
Apresentar um resultado no patamar das concorrentes com um orçamento bem inferior desafiou a crença na lógica de que eram necessários tecnologia muito avançada e investimentos vultosos para inovar.
“Isso sugere que os gastos monstruosos não são tão necessários assim. É isso que torna o modelo diferenciado”, afirmou ao Nexo o neurocientista Álvaro Machado Dias, professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
O especialista em inteligência artificial disse ainda que o DeepSeek R-1 “é um pouco melhor” do que a versão o1 do ChatGPT, da OpenAI, “usando estrutura mais sofisticada e com menor custo”.
Diante disso, investidores passaram a avaliar que superestimaram a demanda por equipamentos da Nvidia, uma das principais fabricantes americanas de chips, fazendo as ações da empresa caírem cerca de US$ 600 bilhões em valor de mercado na segunda-feira (27). O jornal Valor Econômico mostrou que ações ligadas a empresas de inteligência artificial em geral caíram.
A IA como elemento geopolítico
O impacto não foi apenas econômico. As disputas geopolíticas entre os EUA e a China pela liderança tecnológica ocorrem há cerca de uma década. Desde o primeiro mandato do presidente Donald Trump, entre 2017 e 2021, houve batalhas em torno da infraestrutura de tecnologia da rede 5G, semicondutores e carros elétricos.
“A principal disputa geopolítica hoje entre os EUA e a China é na questão tecnológica”, afirmou ao Nexo Renan Holanda, professor de relações internacionais da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), especialista em China. “A inteligência artificial se apresenta como mais uma frente dessa disputa.”
Holanda explicou que o país asiático tem dedicado atenção ao setor de economia digital e inovação, na qual a inteligência artificial se insere, há pelo menos dez anos.
Fabio Cozman, diretor do Centro de Inteligência Artificial da USP (Universidade de São Paulo), afirmou na terça-feira (28) ao Jornal da CBN que a China é o maior produtor de pesquisas acadêmicas do campo da inteligência artificial.
Ao longo do seu mandato, Joe Biden impôs diversas restrições à importação de chips para a China com o objetivo de limitar o avanço do adversário geopolítico no setor — a última delas ocorreu a uma semana de deixar o cargo. Houve também barreiras aos carros elétricos, ao mesmo tempo em que buscava reforçar a produção de semicondutores no país.
Os chineses passaram a avançar sobre países da América Latina em busca de matérias-primas. Também limitaram a exportação americana de metais de terras raras – conjunto de elementos químicos de difícil extração, vitais para a produção de tecnologias e diversos produtos da área de defesa. A China domina toda a cadeia produtiva dessa indústria.
O avanço da inteligência artificial tem grande impacto econômico na automação de empresas e no cotidiano das pessoas em casa ou no trabalho.
O professor da Unifesp disse que essa tecnologia também é relevante para a inovação militar. “A percepção da inteligência artificial através da robótica e de armas autônomas vai determinar a hegemonia do planeta nas próximas décadas”, afirmou.
Para Dias, a ascensão da DeepSeek também apresenta um impacto simbólico relevante. “A lacuna entre os EUA e a China [no avanço tecnológico] é muito menor do que os americanos gostariam de assumir”, afirmou.
A resposta americana
Trump afirmou na segunda-feira (27) que a ascensão da DeepSeek era um alerta para a indústria tecnológica do país.
“O lançamento da DeepSeek deve ser um alerta para nossas indústrias de que precisamos estar focados em competir para vencer”, disse o presidente. “Eu diria que isso é algo positivo. Então, em vez de gastar bilhões e bilhões, você gastará menos e chegará, esperançosamente, à mesma solução”, acrescentou.
O segundo mandato do republicano iniciou com uma relação mais estreita entre governo e tecnologia, com a participação do vice-presidente JD Vance, um ex-investidor do setor de tecnologia, e a ligação com os CEOs das big techs.
Ao tomar posse, em 20 de janeiro, Trump revogou um decreto assinado por Biden em 2023 que criava padrões de segurança e uma marca d’água para conteúdo gerado por inteligência artificial, entre outros pontos. A iniciativa tinha o objetivo de colocar barreiras em possíveis riscos para a segurança nacional e o bem-estar econômico.
O presidente americano anunciou em 21 de janeiro o plano Stargate, de desenvolvimento de infraestrutura tecnológica com investimentos privados de US$ 500 bilhões em cinco anos. O programa tem parceria com a OpenAI, a empresa de gerenciamento de servidores e bancos de dados Oracle e a empresa de telecomunicações japonesa SoftBank. Não está claro como será a participação do governo no programa.
A iniciativa gerou incômodo em Elon Musk, CEO do X, da Tesla e da SpaceX. O bilionário aliado de Trump, que comanda o comitê consultivo do governo chamado de Departamento de Eficiência Governamental, ficou de fora do projeto. Ele foi um dos primeiros investidores do OpenAI e fundou sua própria empresa de inteligência artificial, a xAI.
Fonte: Nexo Jornal