Entenda o que representa o peronismo para a Argentina nos dias de hoje
Julio Adamor
Brasil de Fato | Botucatu (SP)
Encerramento da campanha de Sergio Massa antes do primeiro turno: símbolos históricos do peronismo seguem presentes no imaginário político argentino - Juan Mabromata/AFP - 17/10/2023
Encerramento da campanha de Sergio Massa antes do primeiro turno: símbolos históricos do peronismo seguem presentes no imaginário político argentino - Juan Mabromata/AFP - 17/10/2023
Quando acompanhamos eleições mundo afora, tentamos categorizar os políticos num espectro ideológico que vai da extrema esquerda à extrema direita para compreender melhor o que está em jogo e até para identificar quem tem uma visão de mundo mais parecida com a nossa. Mas, em alguns casos, esses rótulos não dão conta da complexidade envolvida.
A disputa presidencial argentina é um caso assim. No primeiro turno, tivemos três candidatos competitivos. Patricia Bullrich, que ficou em terceiro lugar e saiu do páreo, pertence ao campo conservador, identificado com a centro-direita. Javier Milei, que terminou na vice colocação e agora disputa o segundo turno, é um ultraliberal que ganhou o rótulo de extrema direita. Seu adversário é Sergio Massa, o peronista que venceu com folga o primeiro turno prometendo defender os trabalhadores e os direitos sociais no enfrentamento da grave crise enfrentada pelo país.
Com tal configuração, é natural enxergar Massa como o elemento de esquerda dessa disputa, o candidato mais progressista. No entanto, de esquerda mesmo, só havia uma candidata no primeiro turno e foi a última colocada: Myriam Bregman. Vamos, então, tentar ampliar um pouco nosso entendimento sobre o peronismo e o que ele representa na Argentina de hoje.
‘Patas en la fuente’
O peronismo surgiu durante a década de 1940. Em 1943, um golpe levou ao poder um grupo formado por militares, que perseguia movimentos populares. Mas havia um ministro do Trabalho, o coronel Juan Domingo Perón, que preferia se aproximar dos trabalhadores e movimentos sindicais, promover justiça social. Ele criou benefícios como salário mínimo e 13º, medidas que desagradaram as elites e o levou a prisão em 8 de outubro de 1945.
“Perón foi preso por não existir no grupo de militares que governava o país um consenso sobre o caminho a ser seguido ou preocupações com ‘o povo nas ruas’, afirma o professor da UnB Carlos Vidigal, estudioso da história argentina, ao Brasil de Fato. “O povo nas ruas era uma novidade política”.
A detenção de Perón desencadeou manifestações populares em sua defesa. A mais notória ocorreu nove dias depois, em 17 de outubro, e ficou conhecida como patas en la fuente (pés na fonte). Sob um sol escaldante, uma mobilização liderada por uma classe trabalhadora renovada invadiu Buenos Aires e ocupou a Praça de Maio, onde fica a Casa Rosada (sede do governo), para exigir a liberdade de Perón. Num local tradicionalmente frequentado por uma elite comportada e cheia de bons modos, pessoas de variados recortes sociais e raciais levantaram as calças acima dos joelhos e entraram numa fonte para se banhar, cena que foi fotografada e entrou para a posteridade.
O protesto de 1945 produziu imagens que ficaram na História / Reprodução
No mesmo dia, Perón foi libertado. No ano seguinte, seria eleito presidente para seu primeiro mandato (1946-1955), enquanto surgia uma corrente política com peso de massas, que dialogava com a esquerda e a direita, e levaria seu nome. Começava ali a primeira a primeira de quatro fases do peronismo, conhecida como “peronismo clássico”, explica o economista argentino Alejandro Horowicz, doutor em ciências sociais e autor de livros sobre esse movimento político.
Era uma época de mudança do capitalismo na região, da chamada substituição de importações, ou seja, a passagem do modelo primário-exportador e da ordem política oligárquica para a industrialização e a inclusão dos trabalhadores na política, via direitos civis e legislação trabalhista. Ou, pelo menos, a intenção declarada de inclui-los. Afinal, os próprios sindicatos, hegemonizados por comunistas e anarquistas, perceberam que o programa de Perón era uma forma de incentivar a industrialização e conter os trabalhadores, explica Vidigal.
“O peronismo foi um desdobramento do processo de crescimento populacional, urbanização e industrialização pelo qual a Argentina passou no período de apogeu, entre 1880 e 1930. A passagem de um país primário exportador para um país em alguma medida industrializado demandou uma nova forma de dominação, que foi o peronismo, um dos casos clássicos de populismo histórico latino-americano”, diz ele. Os outros são o varguismo, no Brasil, e o cardenismo, no México.
Ao mesmo tempo em que ampliava benefícios e promovia melhoria na qualidade de vida, Perón também aumentou o controle sobre os sindicatos, numa relação mediada por sua esposa María Eva Duarte de Perón, a Evita, que se aproximou dos trabalhadores e ajudou a popularizar a imagem de um Estado benfeitor.
“Perón era militar, político, ideólogo y otras cositas más. A principal inspiração de seus textos foi o fascismo italiano. Era um admirador de (Benito) Mussolini e Evita dizia que ele o imitaria em tudo, menos nos erros”, ensina Vidigal. “A essência do fascismo era o corporativismo, ou seja, a união de classes como contraponto à luta de classes, de inspiração marxista ou comunista”.
Juan Domingo Perón era entusiasta de Mussolini / Wikimedia
No cenário de abundância econômica que se seguiu à Segunda Guerra Mundial (1939-1945), este Estado peronista contava com fartas reservas cambiais e investiu em sua indústria. Também promoveu distribuição de renda, o que estimulou o consumo da população e, ato contínuo, o aumento da inflação, até hoje um problema crônico da sociedade argentina, certamente um dos maiores desafios do próximo presidente.
Peronismo da resistência
Em 1955, quando, no decorrer de seu segundo mandato, Perón sofre um golpe militar e se exila na Espanha - do ditador de direita Franco - , começa o “segundo peronismo, que é o da resistência”, segundo Horowicz. “A classe operária não muda, mas o sistema político, sim. O peronismo agora está proibido, não pode ser candidato a nada.”
O analista argentino menciona dois fatos históricos importantes do período: a mobilização operário-estudantil conhecida como Cordobazo e a emergência de uma organização político-militar chamada ‘montoneros’, que, na definição dele, se reivindica peronista. Os dois fatos “pavimentam o caminho para uma terceira fase do peronismo”, que começa com o regresso de Perón, em 1972, e vai até sua morte, em 1974.
Nessa fase, o peronismo é “mais plebeu, radicalizado, com uma tensão enorme entre duas alas internas, que se dilui em 1973, quando Perón respalda os dirigentes sindicais contra os ‘montoneros’ e a tendência revolucionária”, explica Horowicz. Quando, em 1976, um novo golpe militar dá início à fase mais repressiva e sangrenta (1976-1983) do conjunto de ditaduras argentinas, o que se vê é um “peronismo diferente”.
Segundo o analista, uma característica é o fracasso nas urnas, o que fica demonstrado na derrota para o conservador Raúl Alfonsin (1983-1989). Outra é a capacidade de chegar ao poder com quadros bem distintos da herança de Perón, como é o caso de Carlos Menem, que vence a interna peronista e depois as eleições nacionais em 1989, dando início a um duplo mandato que vai até 1999.
O muro de Berlim havia caído e o mundo passava por uma nova ordem internacional mais instável, sob hegemonia militar e política dos EUA, na qual o dólar era a moeda do sistema monetário mundial. O mandato de Menem se caracteriza por uma gestão tida como neoliberal, alinhada ao Consenso de Washington. O peronismo representou um dos movimentos mais liberais da América Latina, naquela década .
Era, e continua sendo, um peronismo “sem tarefa histórica, a não ser a de governar num contexto em que a dívida pública, que garante o funcionamento do sistema e a rentabilidade financeira da classe dominante, siga sendo elemento-chave do programa econômico argentino”, na visão de Horowicz.
Peronismo hoje
As duas fontes consultadas para esta reportagem coincidem na avaliação de que o peronismo é conveniente para as classes dominantes, o que é uma observação interessante no contexto da atual disputa eleitoral, na qual Javier Milei afirma que apoiar sua candidatura é uma forma de combater a “casta política”.
“Tanto à época [primórdios do peronismo] quanto nos governos peronistas mais recentes [Néstor Kirchner (2003-2007), Cristina Kirchner (2007-2015), Alberto Fernández (desde 2019)], a inclusão social se dá por meio de políticas assistencialistas, sem redistribuição de renda e sem maiores prejuízos para o capital. Ao contrário, mantém a desigualdade social e a exploração”, opina Carlos Vidigal.
Alejandro Horowicz oferece um dado ilustrativo. “Nos primeiros três peronismos, os trabalhadores recebiam de 43% a 48% do PIB nacional como renda. Hoje, não chega a metade disso: 23%. Esse é o quadro no qual o candidato Sergio Massa tenta ganhar as eleições”. No passado recente, segundo ele, o peronismo tem se limitado a implementar variantes do Plano Austral, criado durante o governo Alfonsín na tentativa de conter a inflação e estabilizar a economia, sem sucesso.
Questionado sobre o que se mantém e o que se perdeu do peronismo original nos dias de hoje, Vidigal faz o seguinte resumo: “O que foi superado historicamente foi a industrialização (relativamente fracassada), o papel do operariado e a possibilidade de promoção de reformas, ao menos no discurso. Permaneceu o peronismo popular (representado por Evita), o assistencialismo, o controle dos sindicatos e do voto popular, além da composição (articulações políticas variadas) com o capital”.
O peronismo cotidiano é composto por três correntes, na visão do jornalista Mario Santucho, editor da revista Crisis: kirchnerismo, massismo e albertismo. O kirchnerismo, com a atual vice-presidenta Cristina Kirchner à frente, seria, ideologicamente, a corrente mais à esquerda da coalizão, da qual faz parte Axel Kicillof, reeleito governador da província de Buenos Aires. O albertismo, referência ao presidente Alberto Fernández, seria a centro-esquerda. E o massismo, referência a Carlos Massa, seria a direita da coalizão.
Vidigal tem um olhar diferente para esse espectro ideológico. “Não considero que cada liderança corresponda a uma corrente política, embora no dia-a-dia a imprensa argentina assim trabalhe. Tenho dificuldade em tratar de uma esquerda e uma direita peronista, pois, como disse acima, as políticas sociais são de natureza assistencialista."
"Há um peronismo kirchnerista e um peronismo não-kirchnerista, composto por uma variedade de tendências, como o sindicalismo peronista tradicional, os governadores do interior, a burocracia do Estado etc. Mas é verdade que Massa está mais próximo do empresariado e das elites em geral do que Cristina Kirchner, que, por uma série de expedientes, controla o voto popular.”
Edição: Rodrigo Durão Coelho
Fonte: Brasil de Fato |SP